Como prometi no post Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés: Chuva, Teoria e Ficção, realço para vocês alguns contos-crônicas do livro que lancei aqui no blog, silenciosamente, em dezembro de 2021, As filhas do adeus.

São vinte e um contos-crônicas sobre mulheres que marcaram profundamente a minha vida. Notem que é parte ficção, parte realidade. Ou como nomeei na minha tese em Escrita Criativa pela PUCRS (12 horas), uma autobioficção.

Bernadete

Supondo que Bernadete não se separou. Supondo que não foi fazer poesia performática para aliviar a dor da separação, preencher o vazio profundo de uma família desfeita.

Supondo que ela não esteja ali, no restaurante do Recife Antigo, rodeada de amantes das artes, dos livros, uma confraria somente de mulheres. Supondo que não tenha bebido vinho tinto além do que deveria, para quebrar a timidez e alcançar o outro lado da mesa, onde viu duas moças olhando em sua direção.

Uma morena. Outra branquinha, branquinha, com as bochechas rosadas, também por causa do vinho. Supondo que fosse o vinho. Elas aguardam a performance sobre Goa, cidade dos ancestrais de Bernadete.

Supondo que Bernadete fica muda, diante daquelas trinta mulheres, diante da possibilidade de não agradar, e de não trazer de volta, à tona, aquela menina sapeca, que encantava a mãe, as irmãs, que encantaria Patricia e Karla, do outro lado da mesa redonda, no restaurante do Recife Antigo, em Pernambuco, se recitasse a poesia.

            No caminho de Goa

            Eu vou

            Buscar as sombras

            Esquecidas

            Mudar o destino

            Difícil

            De ser mulher

            E mãe

            Filha

            Amiga

*

Elba

Elba poderia criar coragem e ir falar com a escritora pernambucana. O teatro Joaquim Cardozo lotado com a apresentação do espetáculo adaptado do segundo livro de Patricia.

Elba sempre gostou de poesia, escrevia desde criança, mas não mostrava para ninguém. Ou mostrou, um dia, para Bernadete, aquela da possível performance, no encontro da confraria de mulheres, no Recife Antigo.

Elba mostrou para Bernadete que a convidou para o espetáculo teatral. Era a adaptação de um livro que falava de joaninhas, e de amor perfeito, e o cenário era todo branco, feito nuvens de algodão.

O teatro Joaquim Cardozo lotado, em um tempo que podíamos sentar todas juntas e não nos contaminar, numa época em que era mais fácil travar novas amizades, e se aproximar de uma pessoa totalmente estranha – uma escritora –, sem medos ou pudores, e externar o que vai lá no mais âmago da alma, quando se lê, e se gosta, e se muda de vida por causa de um livro bom.

Será que Elba quebra o encanto da timidez e fala com a escritora pernambucana?

Gisela

Na segunda turma do segundo ano de doutorado em Escrita Criativa, Patricia conheceu Gisela. Ela estava na disciplina de Oficina de Narrativa – Romance, do escritor e professor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil.

Gisela lembrava Karla, lembrava Bernadete, ambas mencionadas na performance que poderia ter sido, no Recife Antigo. Mas a cena que irá mudar em alguns instantes, trata de uma gaúcha que morou no Rio de Janeiro, e é um híbrido das duas cidades. E é uma artista híbrida, mistura boa de atriz, cantora punk, poetisa, professora e teórica livre das amarras da academia, criando, com as próprias mãos, a teoria que lhe faz bem à alma.

Que lhe faz bem ao corpo, porque Gisela respira a arte nos pulmões, e transpira pelos poros todos, pelas células todas, até chegar ao DNA e mudar uma vida inteira. Ao menos a vida daquela nordestina, aluna vínculo de doutorado em Escrita Criativa, que a admira no café do bloco 8 conversando com o escritor, editor e palhaço paulista Frederico Linardi.

Um dia, os três juntos, iriam ao Guion, beberiam uma taça de vinho tinto e celebrariam a amizade.

Iaranda

Parece que foi outro tempo que Patricia se dirigiu com os filhos mais novos ao Recife Antigo durante a pandemia.

Era dia dos pais, e o pai dos filhos estava isolado deles, eles estavam isolados do mundo, como se fosse um filme de ficção científica. A ciência ainda não havia descoberto a vacina contra Covid-19 e eles saíam no carro de máscaras, luvas e álcool em gel.

Patricia, impactada com o livro de Iaranda. A leitura do livro da colega de mestrado em Teoria da Literatura, e que agora se aventurava pelo mundo mágico da ficção. Porque o que viviam não poderia ser realidade, a realidade incrível mais fantasiosa do que a criação literária.

E os cenários do livro de Iaranda tornaram-se críveis para Patricia. E Patricia viveu Salomé, o primeiro livro de Iaranda, nos mínimos detalhes: a praça da República, o palácio Campo das Princesas, o teatro Princesa Isabel, a Casa de Cultura, antiga Casa da Detenção. E as pontes. E os mangues. E a diferença social, gritante, que não permite os seres humanos caminharem mão a mão, passo a passo, juntos e juntas, como se houvessem nascido no mesmo instante, atravessado o paraíso em busca da árvore do conhecimento e libertado uns e umas da escravidão. De corpo e alma.

Jaíne

Aquela moça, Patricia talvez não a tivesse conhecido se não fosse graças a Cida Pedrosa.

Estavam, Cida e Patricia, na livraria Cultura do Paço Alfândega em Recife. Tomavam café. Folheavam o projeto do livro de Cida, As filhas de Lilith, com ilustrações de Thereza da Costa Rego. Falavam de literatura, e poesia, e vida, quando aquela moça subiu os últimos degraus da escadaria. Uma escadaria cheia de flores do campo, como se fosse a do livro de J. M. Simmel.

Uma escadaria cheia de dons, porque Jaíne seria apresentada em 2008 para Patricia, e nunca mais se afastariam uma da outra, e nunca mais Patricia conseguiria imaginar outra pessoa para cuidar dos seus livros como se cuida de flor, como se sente o aroma de jasmim subindo das páginas impressas, e editoradas, e ilustradas pelas mãos de Jaíne.

E Jaíne jamais imaginou encontrar aquelas palavras, jamais se debruçou em palavras feito as escritas por Patricia. As histórias lembravam Moreno, a cidade próxima a Recife, onde pai, mãe e tia habitavam juntos, em harmonia. Era como se sentisse em casa nas páginas escritas por Patricia e nunca mais, nunca mais mesmo, desejasse voltar ao mundo real.