84. SILÊNCIO: OS COMPANHEIROS ESCREVEM AO LADO
[Foto de Leonardo Sessegolo]
Se Escobar Nogueira realmente dança sozinho, o lápis da mesa boiará no mofo de dois dias.
A cerveja há de sentar na cadeira
de uma beira de estrada e esperar
que os jukeboxes e os bordéis imaginários recitem o melhor Quevedo.
Escobar sabe que um morto é único.
Sozinho, procura, entre nomes do telefone, apenas as fotografias dos conhecidos — aqueles que perderam muito dinheiro.
*
Moema Vilela viaja sozinha
com seu sexo, atravessando bibliografias.
Profissionalmente sozinha nas roupas,
no revezamento de comidas e paisagens,
ela coloniza terra de homens
e a língua que, dizem, tem gosto de água.
É fato: a mulher que escreve se inscreve.
Sozinha na sala de aula, rodeada
pelo calor ou pela chuva,
Moema segura a corda do sotaque
para que a solidão não desafine.
*
Caminhando sozinho, Richard Serraria
vê as cabeças: elas acordam cedo
e disputam o mesmo trem
cujos vagões empilham manequins.
Gritos distribuem mãos pretas pelas ruas, oferecendo fome às firmas.
Ao final da tarde, os cabelos desamparados (Richard sozinho contra o vento) sopapam canções da outra margem abrigando na casa da palma da mão gente sem sombrinha nem literatura.
*
Sozinho e no mesmo idioma
que só entendo ao dormir:
escrevo sobre o tremor emprestado
dos companheiros que encontro
na beleza de um prato de comida.
*

*
85. UMA CRÔNICA DE VERÃO
[Foto de Valmir Mihelon]
Não existiam litorais
(só cigarras), e a tarde
tinha aquela pele
de calma e desperdício.
Suar me dava orgulho.
O nosso carro ardia em frente à casa,
sacudido pelos ônibus
que deixavam gente cansada
e pó sobre os armários.
O pátio tinha hectares estrangulados
nuns palmos de jardim,
telhas de barro
e depósito de vasilhames.
A certa hora a terra desaparecia,
e a noite chegava
com aquela dentadura de calor
e alguma umidade,
e então, inevitáveis,
os mosquitos espalhavam
uma atmosfera de cacto
e detefon.
A mãe mandava recolher
os comandos-em-ação,
e eu sabia sem chiclete
que era quando um vento
tremia nos fios de luz
como se estivessem vivos.
Mas os chuveiros de janeiro a fevereiro
cantavam cachoeiras
e num banho cabiam planos e revisões.
Porque éramos pobres,
e eram tão infinitos os verões,
que cresci com esta saudade:
esperava que todos dormissem
para escutar a praia do meu corpo
enquanto eu bebia um copo de água
da torneira
com muito gelo
e de olhos fechados para o escuro.
*

*
86. CINCO INQUIETAÇÕES SOBRE A ESCRITA
[Foto Valmir Michelon]
1. No fundo, no fundo,
se pode escrever
sobre o que repetem os dias:
o almoço, a escova de dentes,
os dentes.
Posso escrever na linha reta
de um fio de luz
sobre todas as iminências
que se ofertarem em fila.
*
2. Escrever sobre o meu nome,
esta palavra agora estrangeira,
ou sobre algo na tarde
que me faz lembrar a areia,
o sono,
um copo que deixei sobre a pia
e que só revisito
porque escrevo sobre ele.
*
3. Posso escrever
a partir dos sons da noite
ao fim da qual morrerão insetos
que só a linguagem reanima.
Escrevo segurando os tentáculos
de um polvo, um bico de ave
que canta com voz humana.
*
4. Mas se finalmente noto
este toco de lápis que não acaba
e ainda inédito, como inéditas
ainda as pouquíssimas letras
em suas recombinações de casa,
é porque, sim, frequentei
as mesmas palavras
que escuto pela primeira vez
então irreconhecíveis
depois da tinta.
*
5. Tenho convocado fósseis
(os que flutuam)
para que se escavem:
eu velo esta língua
que por enquanto dorme
dentro da saliva.

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* Altair Martins (Porto Alegre, 1975). Bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — ênfase em tradução de língua francesa —, mestre e doutor em Literatura Brasileira na mesma universidade. Ministrou a disciplina de Conto no curso superior de Formação de Escritores da UNISINOS entre 2007 e 2010. É professor da Faculdade de Letras e de Escrita Criativa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), atuando no Programa de Pós-graduação. Coordena o projeto de pesquisa O fantástico em tradução. Tem textos publicados em Portugal, na Itália, França, Argentina, no Uruguai, na Espanha, Hungria, em Luxemburgo e nos Estados Unidos. Ganhou, entre outros prêmios, o São Paulo de Literatura (2009, com o romance A parede no escuro) e o Moacyr Scliar (2012, com os contos do Enquanto água). A peça teatral Hospital-Bazar (Porto Alegre: EdiPucrs, 2019), o romance Os donos do inverno (Porto Alegre: Não editora, 2019) e Labirinto com linha de pesca (Porto Alegre: Diadorim Editora, 2021) são suas últimas publicações. Ministrante, desde 2019, da disciplina Oficina de Poesia na especialização Lato Sensu em Escrita Criativa Unicap/PUCRS (2019.2). Contatos: altairt.martins@pucrs.br; www.altairmartins.com.br