Algum dia, a carga que estamos carregando conosco poderá ajudar alguém.

(Ray Bradbury, p. 197)

Em algum texto do meu blog, informo que sou graduada em Ciências da Computação, uma área totalmente diferente do que exerço hoje, após descobrir o amor à palavra escrita. Mas o amor à palavra lida existe desde a alfabetização. Um dos professores (e uma das disciplinas) que mais gostava era o/a de História, e tenho a recordação nítida de, em uma prova de História do Brasil Colonial, eu folhear mentalmente de olhos fechados aquele livro de capa azul de azulejos portugueses, em busca da página certeira para responder às questões da prova.

E isto aconteceu novamente na leitura de Fahrenheit 451 (1953), do escritor norte-americano Ray Bradbury. As poucas mais de 200 páginas desse romance fundamental na arte de bem ler e escrever, nos traz a história do bombeiro Guy Montag que, em um futuro distópico e pré-apocalíptico, ao invés de apagar os incêndios das casas, queima livros por estes serem proibidos de leitura, porque fazem os leitores pensar por conta própria.

Bradbury nos apresenta inúmeras técnicas magistrais de Escrita Criativa, tais como a passagem do tempo pela enumeração (“Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete dias” (p. 48); a transcrição das histórias (p. 49), tanto para absorver o conteúdo, quanto também o estilo do autor; como construir cenas teatrais e cinematográficas (“Montag parou diante da porta, de costas para Mildred” (p. 101) e “Lá no final da rua está a nossa vítima. Vê como a câmera se aproxima? Construindo a cena” (p. 181).

Mas o que mais me retirou do centro na primeira leitura desse clássico da literatura universal – já havia assistido a trechos do filme de mesmo nome de François Trufault (1966) na sala de aula da professora Maria do Carmo Nino – foi a verdade e a atualidade do mesmo em relação às redes sociais, ao mercado editorial e ao sistema literário brasileiros.

As redes sociais podem transformar o diverso no uno, “Todos devemos ser iguais” (p. 81), numa fração de curtidas, comentários ou cancelamentos. “A mente bebe cada vez menos” (p. 80) livros, e poesia, e ficção, e não ficção por causa da abundância de conteúdo. A guerra para quem consegue angariar mais seguidores chega ao ponto de pouquíssimos realmente lerem algum livro significativo (e por inteiro), e cada vez mais as pessoas afirmarem, com todos os átomos de Epicuro, que qualquer um/a pode ser escritor/a, independente da qualidade.

E o que dizer do mercado editorial e do sistema literário brasileiros? Para ter algum reconhecimento, quem escreve precisa ou ganhar um prêmio nacional ou estar em uma editora que o/a projete no país inteiro. Mas como ter chances em um prêmio nacional, se seu livro está em uma editora pequena ou mesmo em uma auto publicação, pois as editoras que podem projetar quem escreve não aceitam autores/as que não pertençam a uma certa faixa etária, ou gênero, ou classe social, ou cor da pele? Lanço, a partir da leitura dos posfácios do próprio Bradbury em Fahrenheit 451, uma constatação e uma pergunta: “O mercado editorial e o sistema literário brasileiros se parecem com o cachorro Sabujo de Fahrenheit correndo atrás do rabo” e “A literatura tem gênero, idade ou cor?”

“A magia está apenas no que os livros dizem, no modo como confeccionavam um traje para nós a partir de retalhos do universo” (p. 107-108). Poder compartilhar com o mundo os livros contidos em nosso âmago, feito um novelo de lã desfiado, é a expressão e a liberdade máximas do ser humano. Quem detém o direito de nos proibir, de queimar nossos livros interiores muito antes que eles tenham nascido? Principalmente, quem tem o poder de nos negar a transformação (e muitas vezes a salvação) que um livro lido ou escrito pode realizar na vida de uma pessoa? 

Bradbury nos alerta: “Existe mais de uma maneira de queimar um livro” (p. 210). E, mais importante, “começamos queimando livros e acabamos queimando pessoas” (p. 13).

Pensemos nisso.