Os franceses

Patricia Gonçalves Tenório*

Nos primeiros seis módulos dos Estudos em Escrita Criativa On-line investigamos a temática da viagem na obra de diversos ficcionistas, poetas e artistas do mundo inteiro. A ideia surgiu em 2018 quando, nos encontros mensais das Livrarias Cultura, em Recife e Porto Alegre, fomos guiados pela mão do fundador da Universidade Popular de Caen, o filósofo francês Michel Onfray, e navegamos com seu Teoria da viagem pelos deslocamentos dos seres ditos humanos desde os tempos imemoriais.

Como afirmamos em vários momentos de nossos Estudos, pesquisamos as técnicas de EC diretamente nos textos ficcionais e poéticos. Mas também a partir de textos de autores teóricos. Bebemos no infinito manancial da Teoria para fazer brotar Poesia, da Crítica para nascer Ficção, e nos extasiamos, nos EEC 2018 sobre a imagem, com os conceitos de fotografia de um dos maiores teóricos do assunto, o escritor, semiólogo, filósofo francês Roland Barthes e o seu A câmara clara. Barthes nos ensina o conceito de punctum, aquilo que nos fere quando admiramos uma fotografia, e nos provoca poesias, contos, novelas, até romances, com o seu poder narrativo e poético.

Outro escritor teórico-poético que estudamos nos EEC 2018, sob a temática do fogo, foi o filósofo e poeta francês Gaston Bachelard. Como poucos, ele soube transitar entre esses dois mundos que se retroalimentam: a Teoria e a Poesia. A obra de Bachelard é dividida em diurna e noturna. Em A psicanálise do fogo, ele nos estimula ao devaneio, nos faz flanar de olhos bem abertos diante do fogo, ziguezaguear pelas chamas da criação para tentarmos fazer surgir uma nova fênix.

E descobrimos o último conceito do sétimo módulo dos EEC On-line com o escritor francês André Gide. O mise-en-abîme de Gide foi tomado emprestado da heráldica, em que a reprodução de um escudo ad infinitum, um dentro do outro, gera a sensação de espelhamento, que encontramos em dois espelhos um diante do outro, ou na impressão de “não acabar jamais” de se extrair, como vimos antes, bonecas cada vez menores naquelas bonecas russas, as mamuskas. O próprio Gide constrói, feito espelhos infinitos, um Diário (dos Moedeiros Falsos) que narra a construção de um romance (Os moedeiros falsos), que, por sua vez, é feito, também… de um diário.

Finalizamos o sétimo módulo dos EEC On-line com um exercício de desbloqueio a partir dos autores elencados e a sugestão de filmes relacionados com os franceses e a Escrita Criativa.  

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* Escritora e doutora em Escrita Criativa (PUCRS). Contatos: grupodeestudos.escritacriativa@gmail.com e http://www.estudosemescritacriativa.com/

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Módulo 7 – Aula 1:



Módulo 7 – Aula 2:


Módulo 7 – Aula 3:

Módulo 7 – Aula 4:

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Exercícios de Desbloqueio:

Módulo 6 (Os russos):

Elba Lins

Contato: elbalins@gmail.com

QUASE INV(F)ERNO

07.09.2020

Pés descalços

Roupa esfarrapada

As pedras rasgando a pele

E a estrada é longa

*

Os pés sangrando

Afastam-na da vida antiga

Cada passo aproximando-a

Do destino…

*

O destino…

*

Uma rua escura

Ratos correndo

Levando na boca

O taco de pão.

*

O mercado deserto

Restos de frutos

Restos de folhas

Que cedo, eram verdes…

*

As mãos catando

Disputando pedaços…

E a noite fria

O vento bravio

Invadindo espaço

Fustigando a carne

*

A pele

Quase nua

Quase em gelo

Se tornando.

*

O dia amanhece

Um resto de gente

Resvala…

*

Olga Nancy

Contato: olga.cortes@acad.pucrs.br

A tessitura do dia

agosto/2020

Das coisas do cotidiano

daquilo que não importa

do fato que não encanta

das sutilezas que não olhamos.

*

Das coisas do cotidiano

do gesto descompensado

do riso frouxo com o gato

da lágrima engolida

da cebola ardida.

*

Das coisas do cotidiano

da janela embaçada da alma

do chão liso que marca

o passo acelerado.

*

Das coisas do cotidiano

da louça que grita por água

do som alegre da sala

do rito do cotidiano.

Módulo 7 (Os franceses):

Bernadete Bruto

Contato: bernadete.bruto@gmail.com

Antigo Diário

                                                                                                             Se papai deixar irei
 Em setembro bem

 Te encontrar
Contigo passear
Pois terei que estudar
 Para me formar
 E então contigo me casar. (…)

(Quando setembro vier – Wanderléa) 

Recife, 16 de setembro de 2020.

Ficou espantada ao se deparar com aquele diário na estante ao procurar uma determinada pasta. Como fora parar ali depois de tanto tempo e várias mudanças?  Abre uma página aleatória e novamente aquele assunto antigo retorna. Uma história de amor… uma menina abre um diário retirado de um gaveteiro onde estava bem escondido. Lê: “Recife, 31 de agosto de 1968… Querido diário…” Uma adolescente, como quem está perante o confessionário, relata ao diário a enorme paixão platônica e tão bela como os filmes dos anos sessenta! Ah, quando setembro vier… O Baile seria naquele final de semana, todos iriam estar lá. A mocinha escreve que desconfia que ele tem alguma queda por ela. Da última vez que   dançaram, confessa que ele falou do suave cheiro que emana de seus longos cabelos pretos… E diz da expectativa daquele próximo encontro no sábado… e acrescenta, que naquele dia que escreve, ela o viu passar na frente de casa. Estava lindo, dirigindo o fusca verde claro, a cor igual de seus olhos. Mas a menina que lê não viu nenhum nome e não teve tempo de ler mais nada porque as garotas todas voltavam ao quarto. Por isso, tratou de devolver rapidamente aquele diário ao local onde estava guardado. A menina passou dias olhando os carros que passam naquela rua… mas o que mais havia eram carros daquele modelo e cores…ou eram brancos, ou cremes ou verdes claro… um nome não foi dito. Não conseguindo decifrar o enigma, exclama: “Que bichinha danada! Não confia nem no próprio diário!” Ah, mas o sentimento foi lindamente impresso naquela letra bonita, que a menina demorou a esquecer, embora depois perdeu o interesse perante outros acontecimentos em um ano tumultuado e cheio de notícias complicadas.

Um dia, muitos anos depois, a menina, agora adolescente, ficou de castigo por ler o diário de mais uma irmã. Do castigo no quarto confessa a outra, uma mulher já feita, que lera o seu também. “Sou muito curiosa, mas não deveria ter lido o diário de B., nem contado na mesa, na hora do almoço, para plateia de irmãos, do novo grande amor. Aquela escrevera com todas as letras o nome do amado e muito mais coisas… muito embora a menina sabia que, para aquela irmã, nem precisava de diário para saber de suas paixões. Pois quando ela falava muito de um rapaz, várias vezes ao dia, todos já entendiam que estava apaixonada e ela logo confirmava a suspeita. Mesmo assim, a mocinha castigada confessa a outra irmã, que, embora não estivesse arrependida, sabia que havia feito errado e que não faria novamente…

A irmã do primeiro diário lido, mulher já feita, bem resolvida com relação ao seu destino, ri bastante. E ainda satisfaz a curiosidade. O amado daquela época estava bem embaixo do nariz! Frequentava a casa. O baile não foi feliz para ela, mas foi para sua melhor amiga…ela depois transformou-se em madrinha de casamento e até do filho. A menina, agora adolescente, que já experimentava os amores platônicos, ficou triste sobre o final daquele amor tão puro guardado a sete chaves e se prometeu nunca mais ler nada dos outros. Que as pessoas tivessem sua privacidade e curasse as feridas longe de olhos curiosos e impertinentes como os seus, como ela própria vinha fazendo… Tudo isso a senhora recorda agora… e em cumprimento a uma promessa feita no passado (por mais que a curiosidade lhe corroa o espírito), fecha o diário e guarda-o em local seguro para devolver à verdadeira dona.

*

Elba Lins

De fogo e cinzas

Do fogo vejo surgir teu rosto

No pedaço da carta que ontem queimei

Borboleta negra que voa

Pousando leve no espelho do meu quarto

Espelho que confunde o meu rosto

Com o bater das tuas asas negras

Quero afastar por um instante a despedida

Te segurar junto de mim mais uma vez

Mas agora és somente sonho

Quando te apanho faz cinza em minhas mãos

Já não és nada

Senão cinzas repisadas

Que mancham de negro

As lágrimas que tento estancar.

*

Joel Martins Cavalcante

Contato: jmartinscavalcante@gmail.com

Autobioficção e a libertação interior

Escrever é uma forma de libertação. Penso que todos os escritores e escritoras – me permitam falar dos dois gêneros, é preciso deixar de entender o masculino como o universal – quando criam seus personagens, no caso de ficção, ou escrevem ensaios baseados na realidade, estão de alguma forma no processo de libertação interior.

Entendo libertação não no sentido negativo do termo. Penso que todas as ideias que temos, pensamentos, concepções de mundo, de cultura, religiosidade, etc., estão presas até o momento que exteriorizamos para alguém. Como todo leitor que ama livros, eu acredito que a melhor forma de exteriorizar essas coisas é por meio da escrita.

E vou além: a melhor forma de libertação é por meio da escrita literária e da autobioficção. Desde que aprendi esse conceito usado pela professora Patrícia Tenório, no curso de Escrita Criativa, fiquei encantado. Muitas vezes usei em um velho blog que tenho, mas que publico raramente nos dias atuais, esse recurso, mas não sabia que era.

Meus textos eram uma mistura de ficção com realidade. Criei, várias vezes, cenários afetivos e imagéticos que só existiam na minha mente, mesclando com experiências reais de minha existência. Lembro de um texto escrito, logo após o término de um namoro, que algumas pessoas leram e acharam ser um pequeno conto. Não era. Foi gestado diante da dor afetiva e após uma madrugada insone.

Conheci alguns textos de Clarice Lispector, também, no curso de Escrita Criativa. Aliás, durante um tempo eu tive uma certa aversão à escrita de Clarice. Ainda bem que mudei. Percebi, leitor amadurecido e aspirante a escritor, como a autobioficção estava presente nos textos clariceanos.

Todo mundo é um autor em potencial. Muita gente não percebe isso. Acha que escrever é coisa de outro mundo, para iluminados, para gente que já nasceu com talento. Não é. Tenho aprendido que escrever exige técnica, persistência, uma dose de talento também, claro, mas sobretudo muita leitura. Essas coisas são possíveis para as pessoas. Basta reservar tempo. Evidentemente, falo a partir do lugar de um professor que não trabalha como um operário. Certamente, para os trabalhadores e trabalhadoras das profissões que exigem um esforço físico enorme, escrever é bem mais difícil.

Voltando à autobioficcção. Cada ser humano tem uma história única, forjada em dores, prazeres, sorrisos, lágrimas, conquistas e derrotas. Histórias atravessadas de vivências religiosas, políticas, familiares e culturais que, se contadas, são boas para se ouvir e, quando colocadas no texto, para ler.

A matéria-prima do escritor e da escritora é a experiência humana. E qual experiência mais interessante do que a própria? Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, canta Caetano Veloso. Essas dores e delícias, portanto, se bem usadas podem se tornar uma boa autobioficcção e uma ótima maneira de se libertar.

*

Paulo Roberto de Jesus

Contato: poujesus@hotmail.com

Da sua fala sobre o método de Michel Onfray e as viagens, veio-me à mente a ideia de escrever alguns contos utilizando os locais para onde viajei, principalmente no exterior. Nesses contos pode ser usada a técnica “mise-en-abîme” e o autor, personagem do próprio conto.

Igualmente, pode-se contar ficção e inventar histórias dos mais diversos âmbitos, ou seja, o foco pode ser romântico, violência, intimista. Estas técnicas funcionam como um desafio para o autor exercitar a criatividade a partir da imaginação e também da memória, do que lembra dos locais visitados.

Particularmente, digo que a ideia de aproveitar a memória dos locais de viagens para escrever histórias é maravilhoso, porque abre um leque de opções para o autor criar em cima. A técnica do “mise-en-abîme” requer maestria por parte do contista, embora não seja impossível exercê-la. E o difícil é sempre um desafio, um convite a superar barreiras e ir além, mergulhar mais fundo, dar um pouco mais de si.

Grato, teacher Patricia, pelos vídeos em que nos mostra as técnicas de alguns autores através de seu olhar, seu recorte. Saudações poéticas, democráticas e literárias.