No mês de março de 2021, investigamos o universo pungente do poeta, crítico de arte e escritor de São Luís do Maranhão, Ferreira Gullar.
Primeira Aula do Módulo 3:
Na primeira aula do módulo, compreendemos com Ferreira Gullar que o corpo é uma casa que morre; narramos uma breve biografia de Ferreira Gullar e algumas cidades que habitou (São Luís, Rio de Janeiro, Buenos Aires); apresentamos o componente imagético e a manifestação sinestésica na poesia do autor; detectamos a transformação das palavras sujas (urina, lepra, podre, ferrugem, mijo, lama) do poeta estudado em pedra, ouro, sol e mar, através de uma quebra de sentido, como se fosse um murro no estômago; e constatamos uma relação entre a escrita de Ferreira Gullar e a arte de René Magritte com sua quebra de sentido das palavras.
Segunda Aula do Módulo 3:
Continuação da análise de algumas técnicas encontradas nos poemas de Gullar além da limpeza das palavras sujas, em especial, as listas de Sei Shônagon, o refrão “bom dia” em “Ocorrência” e novamente Edgar Allan Poe visto em Manuel Bandeira; o conceito de objeto que encontramos em Romances de cordel, “A casa” e “Poema” do livro Dentro da noite veloz, relacionando com a letra órfã de pai ausente do discurso de Jacques Rancière no seu Políticas da escrita, além da indicação de filmes sobre Ferreira Gullar e a aplicação do exercício de desbloqueio.
Terceira Aula do Módulo 3:
E é com imensa alegria que convidamos para a live com o poeta, escritor, doutor em Teoria da Literatura (UFPE), o também maranhense Antonio Aílton, na próxima quarta-feira, 31/03/2021, a partir das 19h, no nosso canal do YouTube. Não percam!
https://www.youtube.com/watch?v=El8Bip298pg
Exercícios de desbloqueio:
Módulo 1 – Osman Lins:
Diego Felipe
Contato: diegopereiranoleto@hotmail.com
Marina abriu apressada a porta do quarto. O corpo agitado, o rosto saliente para a sala, e sua voz retumbante: “alguém me chamou?”, disse. Em outro tom, em outras palavras: “Mãe, o que é?”.
Foi invadida por um silêncio de domingo, uma apreensão de igreja, e já dava umas passadas e pisou num chão úmido e escorregadio. É provável que Anita estivesse a limpar os cômodos. Sentiu o cheiro de pinho e lavanda. Estacou culpada da imundície dos seus pés olhando as prateleiras na sala.
Quem lhe dera? Admirada pelo pequeno jarro sob a cômoda. Um tampo de barro avermelhado, e um talo verde a subir a apontar o forro. Quis tocar-lhe o tronco, talvez agora mais robusto, mas aquela casca fria e espinhenta, umas pontas finíssimas e luminosas pelo claro da manhã. Apenas curvou-se, o rosto cuidadoso, uma alfinetada de uma lembrança dolorida, a mão ingênua no cacto.
Agora dava com aquele verde, o vermelho do pote, um prato forrando-lhe, em contraste com as tábuas de madeira tão assim amarelas? Achou feio. E como era que não notara antes, essa dissonância? Quando cortava o cabelo curto demais, logo o semblante se contorcia no espelho, que para coisas feias nada se basta. Um dia nublado se nota e se cansa, ou uma mancha em roupa alva, ou os móveis fora do lugar, e logo se percebe assim a mudança das coisas, e ela, nem tão bonita, não se conforma com a feiura. No entanto, não dera com aquilo, e quis chamar Anita, não, melhor a mãe, não, que ela mesma o fizesse. Mas o quê?
Teve medo.
Postaram aquela planta sobre a mesa, um broto tão inofensivo, a mãe a colher uns grãos de terra, a tia a sorrir de tão desajeitada criatura. O que era?, perguntara, e a mãe lhe negara o nome, olhos sérios, o dedo ríspido: “Não toque”. Mas ela gostava daquilo, um bicho verde, um animal de estimação, e pôs a mão firme, fechou com força e tanto ímpeto, que demorou para que gritasse, e mais alguns segundos para saber que dela partia aquele turvo sonoro alto e fino, como são os gritos de uma menina. A mão úmida e vermelha, uma revoada de mulheres, como patas desvairadas, e o primeiro choro de dor.
Ouvira uns passos em outro cômodo. Arrastavam-se uns pés de coisa grande e pesada. Um suspiro de força e cansaço.
“Anita?”. Confusa, ela deixou escapar. “Mãe?”, com uma força mais para quem sabe romper uma parede, e diante daquele vazio só o pequeno cacto, já protuberante e altivo que lhe respondeu. Fora em silêncio, imóvel como tantas outras coisas por ali, espalhadas e vivas, coisas que tinham formas e cores, ela notava, e a casa como um grande baú cheio, as lembranças que brincavam com ela tão títere e sozinha.
“Tens quantos anos”, disse em tom piegas, mas rapidamente repreendido, o dedo em brasa para a ponta da planta. Espetou-lhe com um remorso ardente de dor, e conteve a custo o grito, achando-o um tanto assim tão lindinho.
“Mãe? Anita?”, forçara a garganta, e no instante seguinte só lhe veio um eco lá de dentro.
Módulo 2 – Manuel Bandeira:
Cilene Santos
Contato: cilenecaruaru2013@gmail.com
A RUA 15 DE NOVEMBRO
QUERO A DELÍCIA DE PODER SENTIR AS COISAS MAIS SIMPLES.
(MANUEL BANDEIRA)
Era ali que acontecia a grande Feira de Caruaru, cantada e decantada pelo compositor Onildo Almeida e pelo cantor Luiz Gonzaga. A rua que me viu crescer. Ou foi o contrário? Eu que a vi crescer. Bem, caminhamos juntas. Aos nove anos de idade, era comum, aos sábados, dia da feira, acompanhar mamãe nas compras de frutas, legumes, hortaliças e outros mantimentos para abastecer a nossa casa. E tomávamos o melhor caldo de cana do mundo.
Logo no início da rua, ficava a Feira de Panelas (de barro). Grande era o meu deslumbramento diante daquela exposição de obras de arte. Um sortimento de objetos, cores e formatos produzidos pelos artesãos do Alto do Moura. Entre eles, o ilustre Mestre Vitalino que comercializava as suas obras, inclusive o famoso Boi de Vitalino. Do barro, veio toda a mobília da minha casinha de bonecas. Caminhando um pouco, encontro a casa número duzentos e quinze, onde ficava o consultório e a residência do Dr. Geminiano Campos, a quem procurei aos doze anos. Foi ele quem atestou que eu estava “apta a submeter-me aos exames de Admissão ao Ginásio.”
Aos quinze anos, senti despertar os primeiros sonhos do amor romântico. Nas festas de final de ano, que ocorriam na mesma rua, com as amigas desfilávamos ao redor da praça, com olhares fugidios para os rapazes que, em grupos, soltavam galhofas, quando passávamos. E ficávamos contentes.
Também na Rua Quinze, encontrei o meu primeiro emprego formal e o Colégio Santa Inês, que me deu “régua e compasso” com que tracei os meus caminhos. Ao concluir o Curso Pedagógico, ali mesmo iniciei a minha jornada como professora. Lembro bem que na rua havia um alto-falante que divulgava notícias e músicas, A canção francesa F… Comme Femme, do cantor belga Salvatore Adamo faz parte, até hoje, da minha trilha sonora. Aquelas notas musicais inundavam o ar e caiam macio, nos corações apaixonados das meninas da minha geração.
Continuando e concluindo a minha saga pela Rua Quinze de Novembro, em dois mil e vinte, aos setenta anos, fui empossada como membro da Academia Caruaruense de Cultura Ciências e Letras, sediada na Rua Quinze, no mesmo casarão onde consultei o Dr. Geminiano Campos, aquele que me liberou para cursar o Ginasial. E o inesperado foi que assumi a cadeira treze, cujo Patrono é o Dr. Geminiano Campos. Por todas essas eventualidades, a Quinze de Novembro é a rua da minha vida.
Diego Felipe
Hoje, ele precisou lembrar. Como dizia o poeta, “uma flor que desabrocha no asfalto”, e entre pés, pedras, o asfalto negro e pneus aquele botão de flor. Já adulto, não há tanto encanto, mas, quando criança, nunca sonhara assim com algo tão inesperado. Aquele primeiro rasgo, aquela fissura, desencadearia a chegada deles? Sim, e numa tarde, Miguel correra de porta em porta para dizer que eles estavam chegando, que a primeira pedra estava plantada para todos.
Só nesse momento que lhe deu saudade daquela rua. Os meninos correndo, com a água da chuva descendo o córrego, e seus barcos de papel, e a volta pela ladeira em que havia a neve dos pequenos insetos alados, uns pequenos insetos, a lhes mostrarem o caminho de volta. Quando dobraram a esquina, tão visíveis e úmidas as fachadas das casas, corriam para chegar primeiro, as grades do portão de enlaço, um abraço do corredor cheirando a móvel velho, a sala do fundo, quente como um útero.
Ele e os outros meninos saíram das suas portas, um dia o seu fim de janeiro, aquele bordado cinza sob o cume das casas e das árvores, e lá na esquina as senhoras e os cachorros velavam a pedra.
Era ali que costumávamos patinar. O veludo negro do asfalto a lhe acariciar os pés desde tempo imemoriais, muito antes de toda sua infância, como uma herança. Perguntara certa vez em casa desde quando aquele chão ali repousara, quem o lhe havia posto, se um homem só ou um bando; mais curioso, quis saber até onde ia o fim daquela estrada. Na casa do Antônio, três quadras depois, o Sérgio e a Amélia lá pras bandas da ruela Vila. Na cabeça que o mundo lhe parecia mais vasto, as distâncias davam sempre um prazerzinho, um gosto de desconhecido. Lamentava, nesse instante, ter crescido tanto a ponto de se tornar cético.
Ele agachou-se, tocou a lasca de asfalto. Era uma pedra quente, os dedos grudando e manchados de visco. Dentro, um tanto assim de pontos luminosos, e o prazer de apalpar um pedaço de céu, que, como agora, sufocara um sentimento. Aquele pedaço que se deslocava do chão, de todos ali, e por tanto tempo, foi transposto de mão em mão. Primero, as crianças, vigorosas e a voracidade em comer; depois os adultos e velhos, curiosos, satisfeitos e de olhos de lamento, de uma tristeza daquela flor tão bela ser tragada de dentro, toda raiz, todo encontro.
Não passava de pedra, que, por algum motivo, foi corroendo-se por dentro e se abria em frestas, que nos pareciam sorrisos, mas depois largos demais, profundos, as caras a mapear tristezas, e ele procurava explicar para si mesmo porque Bruno fora embora, e dos outros que logo também tomariam outros caminhos, sem nada, mesmo hoje depois de tantos anos.
Falou, assim, vagamente, da rua onde morava e de como algo mudara naquela tarde em que um pedaço de chão se partira. Sentia agora, abandonado no sofá, que ali não fora o fim, mas um começo, e que logo se dispersaram, rumo a seus lares.
Elba Lins
Contato: elbalins@gmail.com
À MODA DOS ORIXÁS
Dancei um dia!
Dancei!
Eu,
Mesmo branca de neve,
Mesmo sem lugar de fala
Na dança me espalhei.
E sem descer dos meus saltos
Dancei para todos os deuses
Fui rainha orixá.
A pele da cor de prata
O corpo girando em círculos
Me fez cigana bonita
De pele da cor de ouro.
Meu vestido era vermelho
E com uma espada de fogo
Eu girava sem parar.
Depois me desfiz em vento
Sempre a rodopiar.
Sem temer raio ou trovão
Continuei a dançar.
Só quando a música cessou
Quando a noite virou dia
É que findou a magia
E eu parei de girar.
Fabíola Lucena
Contato: falucena@gmail.com
Declaração de amor ao carnaval do Recife
Essa noite eu sonhei que estava em Recife, havia chegado de Portugal onde vivo e desembarcava para as prévias do carnaval. No sonho, eu caminhava nas ruas no entorno do mercado de São José e Cais de Santa Rita onde os camelôs disputam espaços. De lá segui caminhando pelas velhas calçadas da rua Nova, rua Direita, igreja do Carmo, Dantas Barreto. Ali vão vendendo o colorido do nosso carnaval naquela bagunça pitoresca típica do centrão do Recife que, ao mesmo tempo, assiste o galo a ser montado na ponte Duarte Coelho onde corre por baixo o velho Capibaribe, testemunha ocular da cidade. Sigo andando por entre as pontes de um lado para o outro, apresso-me pela Aurora para conferir as novidades carnavalescas da rua Imperatriz. Atravesso de volta a ponte mais uma vez até chegar à Casa da Cultura e aproveito para comprar alguns artesanatos para minha casa. Lembro que esse ritual de ir dias antes do carnaval é um preparo para minha alma carnavalesca, é uma espécie de confirmação cultural de que ao menos durante essa época o recifense deixa de lado os inúmeros problemas sociais e econômicos para viver a magia do carnaval pernambucano. Um simples ambulante sorrir, exibe seu produto com orgulho porque ele também sente com a alma essa época. Desconfio que só quem cresceu em Recife entenderá esse meu sentimento. O sábado de Zé Pereira era o pontapé do meu carnaval. Os poucos anos que faltei deixaram-me um nó na garganta, uma espécie de carnaval não validado. Naquelas ruas castigadas do Recife eu sentia minha raiz, minhas cores, meu brilho, meu orgulho de ter nascido ali. E esse sentimento, mesmo a quase 8000 km de distância da cidade, me visitou em sonho. A dor da ausência de estar nas ruas do Recife Antigo, de encontrar as pessoas mascaradas e fantasiadas, de ir ao encontro na rua do Bom Jesus dos blocos antigos, citados em muitas músicas carnavalescas que parecem que nem existem mais, mas existem sim, muitos ainda estão lá. Como dizia o Maestro Nelson Ferreira: “Bloco das Flores, Andaluzas, Pirilampos, Apois Fun, dos carnavais saudosos”. No sonho eu via o colorido das fantasias, pinturas, máscaras com tanto detalhe que podia garantir que fui teletransportada. Acordo em pleno sábado de inverno com uma dor no peito, uma dor de saudade! O que me conforta é que a magia do carnaval em Recife não vai acabar e um dia eu estarei lá novamente e esse sonho vai ser uma mera lembrança que hoje resolveu me assaltar.
Ilana Kaufman
Contato: ilakau7@gmail.com
À noite, ou de dia, caminhar até a orla de Ipanema, em Porto Alegre, é um espetáculo à parte. A partir da rua Déa Coufal, se avista umas Aroeiras-saldos e uns Hibiscus dispersos. É reconfortante andar pelas ruas deste bairro tão acolhedor. Ao chegar à avenida Guaíba, o rio se apresenta manso e límpido. Costumava sentar-me por longos e tranquilos minutos em um banco de pedra que facilitava a observação mais prolongada da paisagem. Como era agradável continuar o percurso encontrando plantas, aves e casas enobrecendo o horizonte. Algumas vezes, se deliciar com um picolé fazia parte daquela rotina. Ao voltar para casa, depois de um dia de trabalho, nuvens rosas acompanhavam o trajeto.
Maria Clara Lima e Silva
Contato: clara.limas07@hotmail.com
Módulo 3 – Ferreira Gullar:
Bernadete Bruto
Escrita Breve
Ilana Kaufman
Por que respeitar?
Tem gente que não admite ser gente
Vive passando por cima de tudo e de todos
Inconsequentemente.
Por que respeitar?
Comprar exacerbadamente,
Falar demasiadamente,
Fingir complacentemente.
Até quando e quantos sucumbirão por atos de tantos impunemente?