Oh, Portugal!

 

Somos nós, brasileiros, seres portugueses. No paladar, nas tradições, em um certo modo de ver o mundo que nos (re)une através do mar, como se pudéssemos ver o Marco Zero das Américas, aqui em Recife, lá no farol do Cabo da Roca, o ponto mais a oeste do continente europeu.

Em época de quarentena, iniciamos gratuitamente em março 2020 o curso Estudos em Escrita Criativa On-line**. No segundo módulo, investigamos a cultura que também nos deu origem, e dois escritores/poetas que nos são muito caros: Sophia de Mello Breyner Andresen e Fernando Pessoa. Começamos pelo mar de Sophia. Autora nenhuma representou tão bem o mar português como Andresen. Além de transitar pelos mitos, a política e os poetas eleitos pelo coração, encontramos no Oceanário de Lisboa poemas de Sophia cantando o mar e os seus encantos, os braços dos versos tombando nas areias das praias portuguesas.

O importante para nós dos EEC é, através da relação entre a literatura e outras artes e áreas de conhecimento, descobrirmos quais foram as técnicas utilizadas por cada escritor/poeta, apreendermos até entrar no sangue e nos esquecermos no momento de pôr em prática. E encontramos um grande manual de Escrita Criativa em outro poeta português: Fernando Pessoa.

“Esta é uma autobiografia sem fatos”. Fernando Antonio Nogueira Pessoa assim apresenta um dos seus livros mais contundentes: o Livro do Desassossego. Sob a máscara do semi-heterônimo Bernardo Soares – um sujeito que Pessoa afirma ter conhecido em um restaurante e que lhe confia os escritos para fazer o que bem quisesse –, Fernando passeia pela própria subjetividade e investiga diversas questões da natureza humana.

O tema dos nossos Estudos é a Escrita Criativa. E a temática, a viagem. Viajar sem sair da própria cidade de Lisboa. Essa é a proposta de Bernardo/Fernando, esse é o desejo de Soares/Pessoa. Vestido de prosa, mas sem perder a poeticidade do olhar, o Livro também desfia questões da escrita, a começar pela reunião dos heterônimos em um mesmo espaço-texto, além de referências explícitas ao próprio fazer literário de quem o escreve sem querer escrever.

E apresentamos um pouco do conceito de autobioficção (interstício entre a autobiografia e a autoficção), defendido em nossa tese em Escrita Criativa na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em outubro de 2018.

Finalizamos o segundo módulo dos EEC On-line com um exercício de desbloqueio a partir dos autores elencados e a sugestão de filmes e séries relacionados com Portugal e a Escrita Criativa.

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Módulo 2 – Aula 1:

Módulo 2 – Aula 2:

Módulo 2 – Aula 3:

 

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É com imensa alegria que compartilho os cinco primeiros textos dos participantes:

 

Exercícios de Desbloqueio do Módulo 1 – Língua Inglesa:

 

Aylanne Silvestre

Contato: aylanne.adriano@gmail.com

 

O sonho contado na janela

Da janela do teu mundo, me disseste que tu já não eras a mesma, mas essa afirmação apareceu de forma tão sofrida e entrecortada que quase não pude compreender. Da minha janela te perguntei o que te fez acreditar em uma mudança em tão pouco tempo nesses dias que se sucedem, esses dias que ninguém aguardava:  dias de morte, sofrimento, solidão, dias de janelas abertas e de portas fechadas.  Me disseste que não compreendias mais o sentido da existência das portas e, por isso, não eras mais a mesma. Da minha janela eu te disse que determinadas situações inesperadas nos obrigam a refletir sobre ações cotidianas remotas que costumamos realizar de forma automática. Me disseste que tu não eras real e que nada disso que vivemos é verdade: as barreiras que se erguiam entre nós, a sobrevivência que dependia do isolamento, o governo nas mãos de um lunático, pessoas que não gozavam do mesmo privilégio de poucos e permaneciam desprotegidas. Injustiça, desigualdade … Tudo é fruto de um sonho.

Mas sonhos têm fim, quando acordamos. E mesmo que não façam sentido, apresentem fatores inesperados e sem correlações aparentes, os sucedidos são baseados naquilo que habita nosso inconsciente, portanto, sonhos são verdades, porém nem sempre visíveis a olho nu. Pensando nisso, te disse então: “Mas ao que me parece todos somos fruto de um sonho”. A minha divagação te fez calar. Pensei: O que é então real? Se sonhos são uma sucessão de eventos inesperados e verdadeiros – pois tudo que habita o inconsciente existe de fato – o que diferencia a realidade e o sonho? Não soube assim responder a mim mesma, mas pude chegar à conclusão que talvez tu estivesses em um estado de choque por negação.  Não queríeis aceitar o que nós, seres humanos, fizéramos para nos colocar aqui nessa história que se segue, nesse movimento derradeiro e agônico do presente, presos nessa miragem do tempo.

“Posso te provar que isso é um sonho? Tudo isso pode acabar rapidamente, eu posso fazer tudo sumir” depois de uma longa pausa silenciosa, ouvi essa pergunta que denotava uma tristeza contagiante, com a voz rouca que expressava grande sofrimento. Não te respondi de imediato, senti um enorme peso na tua dúvida, tua voz exprimia que dentro de ti existia uma angústia que fui incapaz de decifrar. Ao te perguntar como poderias fazer isso, me pediste então para eu descrever exatamente o que estava vendo da minha janela, senti uma vontade de alento no teu pedido, como aqueles desejos que sucedem uma catástrofe, consolos de desastres premeditados. Ignorei essa intuição negativa, quis me convencer que nisso existia um suspiro de normalidade, pois tens prazer nas minhas narrativas descritivas. Naquele exato instante, eu via a selva de pedra que preenche a paisagem que todos os dias contemplo, o manto de um azul enegrecido como pano de fundo e seis majestosas luas crescentes dançavam com suas luzes cintilantes no alto. Olhando para baixo, as luzes artificiais traziam formas diversas, nas quais eu já estava ambientada, tudo conforme as aparições cotidianas e a fase planetária que vivíamos no momento; ressaltei apenas que não via nenhum ser humano a caminhar pelas ruas, como antes era habitual. O silêncio, então, voltou a penetrar-nos e doía aos ouvidos, doía o coração, pois penetrava ao estilo de uma afiada agulha de crochê, como se quisesse costurar alguma coisa por dentro, mas não achava linha.

Então passei a ouvir tua respiração pungente, ofegante, atrapalhada. Ah, tamanha tortura! E eu inerte. Tu estavas chorando, soluçavas com desespero. O teu tormento era para mim compreensível, porém, indecifrável. Por fim, soltaste um longo grito e nada mais pude ouvir, olhei da minha janela para o chão e senti o horror me invadir dos pés à cabeça. Vi o teu corpo envolto em uma poça de sangue, cheguei a duvidar, mas vi que eras mesmo tu: teus cabelos, o pijama azul claro de cetim que eu tanto gosto, tu estavas lá, como uma estrela em teu próprio céu líquido, no qual, por um toque de ingênua beleza natural, projetou-se um singelo espelho lunar. Tanta dor atingiu meu peito ao te ver tão bela e tristemente morta, não enxerguei o menor resquício de vida em ti. Senti uma luz envolver e queimar meu corpo, despertar meus olhos e, repentinamente, tudo eras mesmo um sonho.

 

Bernadete Bruto

Contato: bernadete.bruto@gmail.com

 

Ainda bem

Ainda bem
Que agora encontrei você
Eu realmente não sei
O que eu fiz pra merecer
Você

(Ainda bem, Marisa Monte)

 

Encerrado em casa, não sabia o que fazer diante do medo. O noticiário avisava que o vírus ainda ia se propagar bastante e em progressão geométrica. Talvez, por essa razão, a ansiedade que brotava do noticiário escorreu da tela por água abaixo como se fosse numa enxurrada e espalhava-se no chão da sala.

Era um liquido verde gosmento. Não sabia como estancar aquela praga que, de repente, entrara em seu lar. Depressa, já alcançava outros cômodos. Ia entrando pelos quartos, banheiro, cozinha. Estranhamente concentrava-se na sua casa… Não escapava pelas frestas, parecia mais uma escolha particular em estabelecer-se ali. Que estranho!

Agora, subia vertiginosamente, como no tempo daquelas enchentes presenciadas por ele na infância, e invadia as casas numa rapidez tão grande, levando tudo quanto existia, tudo que era bem querido: gente, pertences, bichos. Todos carregados da mesma forma que as árvores, para serem encontrados como um entulho, espolio de uma devastação muito tempo depois.

A dificuldade maior daquele vírus invasor era o fato de ser uma gosma, como as gelecas que as crianças usam para brincar, e aderia ao corpo, dificultando os movimentos. Como aumentava seu volume da mesma forma que numa enchente, já estava na altura do pescoço. Ao perceber o fim bem próximo, surgiu um último pensamento: Queria ter feito tanta coisa ainda… agora, nunca, nunca mais! Que fim mais triste acabar uma existência por conta de um vírus! Assim tão de repente…

Neste triste pensamento, acorda. Ainda bem que foi apenas um sonho! Entretanto, sabe o que significa o medo. Observa ele, o gosmento, procurando brechas para se instalar em seu espírito. Por esta razão, levanta-se prontamente para fazer alguma coisa. Qualquer iniciativa que dê sentido à vida naquele momento. Não quer mais saber o que não pode ser, o que não serve mais… Ainda há tempo para fazer coisas que lhe façam feliz ou apenas ser simplesmente. Caminha descalço, com tranquilidade em direção à sala. Lá, pode sentir sua alma. Está em casa! Olha ao redor, constata que a TV está desligada e tudo é paz. “Ainda Bem!”

 

Recife, 31 de março de 2020.

 

Elba Lins

Contato: elbalins@gmail.com

 

EM TEMPOS SOMBRIOS ESPERO SATURNO

01.04.2020

 

Quem sou eu?

Quem somos todos nós?

Que aflitos anseiam,

Pela passagem do tempo.

 

A morte da humanidade

Se desenhando

Nas telas de TV

Me fazem pequena

“Um número”

Que tenta se esvaziar

Do supérfluo

E vê o quanto estamos sós

 

A morte da humanidade

Se alastrando a cada dia

Nas telas de TV

Me fazem frágil

Pequena noz

No oceano

Das dores humanas

 

A morte da humanidade

Por culpa

Dos que não querem

Apenas ficar em casa

Me mostram

Como ainda precisamos

Nos esvaziar da carcaça do ego

Da ilusão do poder

 

A morte da humanidade

De todas as cores

De todas as raças

De todo o Planeta

Estampada na tela de TV

 

Me faz clamar

Pelo retorno de Saturno

Apressando o tempo

E nos deixando viver.

 

Saturno, Senhor do tempo!

Acelera os relógios

Para que este pesadelo

Acabe.

 

Gabriela Vieira

Contato: gabi.vieira.araujo@gmail.com

 

Verdade Não Dita

 

se a mais verdadeira beleza

for aquela que se faz presente

em gestos, formas, sons

se for aquela que se mostra

quando seu amor dança,

esbanja o maior dos sorrisos

e dele faz nascer uma gargalhada,

 

talvez haja então

uma verdade não dita

pois o que vejo quando observo

seu sono, sua respiração

regular em meu peito,

quando ouço um

comentário indignado

– que, sem ser visto, no meu rosto

faz nascer um sorriso –

ou o que vejo quando

meu amor faz o mais

corriqueiro dos movimentos

também deve ser considerado beleza

ou não são belas

todas as coisas lindas do mundo.

 

 

Juliana Almeida

Contato: jualmeidacordeiro@gmail.com

 

Mary Shelley contrariou a regra

As regras

Várias

Todas elas

 

Um bom romance só se faz depois dos trinta

Quarenta ou mesmo sessenta

Mulher não escreve

E o que é essa narrativa

Esses monstros…

Mary, o que você fez?

Ele está vivo!

Até hoje está vivo!

 

Assombrados, lemos outra vez

 

Esse Victor é um verdadeiro monstro

Mas Frankenstein é um monstro

Exatamente, Frankenstein é o sobrenome de Victor

E qual o nome do monstro

Victor não deu, criou e deixou solto no mundo, sem orientação nenhuma

Isso é um pai?

 

Isso é um pai?

 

Quem é o monstro?

O que é ser monstro?

Vai, Mary, uma pista

 

Leia outra vez

 

Mary, quantas outras não tiveram a tua sorte?

Foi sorte?

Sendo mulher, acho que precisava de um pouco de sorte

Esses homens…

Aqueles homens!

 

O que faz uma mulher?

 

Exercícios de Desbloqueio do Módulo 2 – Portugal (em processo, falta a 4a aula na terça-feira 28/04/2020):

 

Joel Martins Cavalcante

Contato: jmartinscavalcante@gmail.com

 

A lua no mar

 

Que raiva. Que dor. Eu queria tá na praia. Queria tá no show de Ana. Era meu sonho. Show de Ana na praia. Por que ele fez isso? Por quê? Faz quase um ano que terminamos, mas não consigo esquecê-lo.

Lembro até hoje do dia que nos vimos. Do primeiro beijo. Retiro de Carnaval. Eu saí de minha cidade e fui até a dele. Claro que eu queria conhecê-lo, vê-lo pessoalmente. Não aguentava mais as conversas pelas redes sociais.

Foi tudo de última hora. O pessoal havia me chamado para o retiro de Carnaval. Eu disse que não ia. Queria mesmo ficar em casa. Eu nem era tão próximo dos meninos desse grupo de oração novo. No dia de ir, sábado, antes do Carnaval, eu disse vou. Arrumei tudo muito rápido. Disse a mãe que ia ficar retirado por quatro dias. Ela apoiou, claro.

Chegando lá, antes de entrar na escola, meu coração acelera. Minhas mãos tremem.  O suor escorre pelo meu corpo. Chego no local. Ele está na portaria. “Oi, tudo bem?” “Tudo bem, e você?” “Também”. Sigo para a sala que seria meu quarto pelos dias seguintes. Achei ele frio comigo. Seria só impressão? Não sei. Vou até a portaria, sento ao lado dele. Falo que finalmente nos vimos. Ele disse que bom, né? Tão seco. Desisti. Fui procurar o povo chato que eu tinha ido para o retiro.

Teve a missa de abertura. Teve o jantar com cuscuz e ovos depois. Teve a festa com frevo católico. Teve adoração na sala do Sacrário. Fui pra lá. Rezei. Meu coração apaixonado doía. Eu disse a Deus que tirasse aquela dor de mim. Uma senhora vem orar por mim, coloca as mãos na minha cabeça. Fica um tempão rezando. Percebi que ela queria me fazer descansar, um tipo de desmaio, pra relaxar no Espírito Santo. Faço o que ela quer.

Vou dormir. É tarde da noite. No quarto muita bagunça, muita conversa. Todo retiro é assim. As pessoas aproveitam o quarto pra fazer tudo o que não podem fazer fora. Eu tento dormir, mas o sono não vem. Saio. Vou pra um canto afastado da escola. Fico lá um tempão. Do nada, ele aparece. Pergunta se pode sentar. “Claro, fique à vontade”, eu digo. Tremo. Ficamos olhando para o escuro. A frieza que ele me recebeu no início se transforma em conversa plena. Parecíamos velhos amigos.

Madrugada entra. As vozes silenciam nos quartos. O povo tá dormindo. Eu e ele. Só. A escola é nossa. Ninguém por perto. Conversa avança. Nos beijamos. Até hoje sinto o gosto do beijo dele. Ficamos os dias todos do retiro entre missas, orações, terços, e beijos e abraços. Que tudo.

Pouco depois começamos a namorar. Tudo intenso. Ele diz que me ama. Um dia, na sua casa, o pai dele nos pega. Ele enfrenta o pai. Diz que me ama na frente do progenitor. Sou expulso de lá. Mas continuamos por uns meses. Fizemos planos. Um deles era estar no show de Ana, numa noite de luar. Mas acabamos.

É janeiro. Tem shows na orla de João Pessoa. Um dos shows é o de Ana. Vejo no Twitter ele dizendo que iria com o atual namorado. Que dor. Que angústia. Era para eu estar com ele. Praia de Tambaú. Aquele mar lindo. Noite de lua cheia.

Léo, meu amigo, me liga. “Vamos ao show de Ana?” “Vou não, não posso, estou doente”. Minto. “Está bom. Vou indo. Xau”. Começo a beber. Fico embriagado. Que dor. Choro. Puxo os cabelos. Tremo. Em algum lugar da praia, diante do mar, naquela noite de lua, ele estaria beijando o atual, quando poderíamos, deveríamos, era para ser nós dois lá, abraçados, com os lábios colados, dançando com as canções de Ana Carolina.

 

Vanessa da Silva

Contatonessacy99@gmail.com

 

Adentro de mim

Uma vez, certamente, li…

Que sou do tamanho que me vejo

Como posso então ir

Além dos acordes desse sofrimento

Que enfrento no meu mundo adentro?

 

Sou feita de grandes desafios em um mar aberto

Coberta de tamanha profundeza

Eu sou meu mundo inteiro ferido

Que se dissolve no restante do

Cosmos místico.

 

 

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* Escritora e doutora em Escrita Criativa (PUCRS). Contatos: grupodeestudos.escritacriativa@gmail.com e http://www.estudosemescritacriativa.com/

** Com design de Jaíne Cintra (PE), câmera e edição de Mariana Guerra (PE), roteiro e redes sociais de Juliana Aragão (PE). O curso fornece certificado de participação por módulo e total (oito módulos).