Termino a leitura de Em nome de Rosa, da escritora, poeta performática e especialista em Escrita Criativa (Unicap/PUCRS, 2020) Bernadete Bruto, com a inquietação dos textos bons. A biografia romanceada de Rosa Amélia Cavalcanti nos faz mergulhar em nossas próprias histórias e não nos sentirmos sós.
Bernadete abre o conto biográfico com uma frase do psicoterapeuta Bert Hellinger, criador das Constelações Familiares. Ela própria consteladora, nos apresenta o conceito de ordem no caos que Hellinger aplicou nas terapias gestaltianas e promoveu durante toda a vida. E, não por acaso, é a ordem na casa um pouco antes de morrer que Rosa, a bisavó materna de Bernadete, exerce de maneira tranquila e exemplar.
“A vida é um círculo que continua girando indefinidamente. Voltamos ao momento que Rosinha arruma a casa para poder ir embora. Não há mágoas no coração. Deixara todas para trás. Resignada e serena, prepara a casa para o que acontecerá em breve. Está cansada. O velho coração fraqueja, avisa que resta pouco tempo. Chama a vizinha. Diz onde estão guardadas as capas novas e limpas da espreguiçadeira para que sejam trocadas e fique tudo arrumado para mais tarde. Pede para rezar com ela, e comunicar aos filhos só depois. Envia recados para cada um deles. Sabe que chegou a hora. Nada mais pode ser feito. Entrega a seu gatinho uma bola de meia nova que acabara de fazer. Com a vida e a casa em ordem, deita-se na cama e ao som do terço da divina misericórdia, num curto suspiro, fecha os olhos para sempre.”[1]
E se pudéssemos reparar nosso passado, colocar em dia no hoje os fatos do ontem preparando o amanhã? Bernadete, no formato que chamo (auto)bioficcional, realiza o mesmo que a personagem narradora Briony Tallis de Reparação, romance do escritor inglês Ian McEwan.
“O problema desses cinquenta e nove anos é este: como pode uma romancista realizar a reparação se, com seu poder absoluto de decidir como a história termina, ela é também Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade ou ser mais elevado, a que ela possa apelar, ou com quem possa reconciliar-se, ou que possa perdoá-la. Não há nada fora dela. Na sua imaginação ela determina os limites e as condições. Não há reparação possível para Deus nem para os romancistas, nem mesmo para os romancistas ateus. Desde o início a tarefa era inviável, e era justamente essa a questão. A tentativa era tudo.”[2]
Passagens altamente poéticas iluminam a escritura de Bernadete. Entre várias, escolho a mais sofrida: o instante no qual Rosa e Severino descobrem que não ficarão juntos.
“O mundo de ilusões finalizou muito cedo para aqueles jovens, como uma renda do tear rompida” (BRUTO, 2020, p. 14).
Rosa revela-se uma guerreira, ao criar quatro filhos sozinha, e sua história inspira a bisneta Bernadete a escrevê-la e tantas mães e mulheres abandonadas a não desistirem, mesmo com imenso sofrimento, mesmo com a esperança quase finda em seus corações. Porque a escritura salva, liberta, nos coloca no oceano das palavras que permanecem vivas, mesmo após a nossa morte.
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* BRUTO, Bernadete. Em nome de Rosa: uma quase ficção. Recife: Ed. Do Autor, 2020.
** Escritora, vinte livros publicados, sendo um deles em formato vídeo-podcast, mestre em Teoria da Literatura (UFPE) e doutora em Escrita Criativa (PUCRS). Contatos: grupodeestudos.escritacriativa@gmail.com e https://www.youtube.com/estudosemescritacriativa
[1] Idem, 2020, Op. cit., p. 68-69.
[2] MCEWAN, Ian. Reparação. Tradução: Paulo Henriques Britto. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 269.