“Ícaro, sentes a largura em tuas asas? Sentes que podes percorrer o mundo com elas e não mais voltar?
Não importa como aqui chegamos ou aonde vais. O que importa é o bater das asas, acelerar o pulso.
Queres o outono das estações, tolo que és! Apreende o instante, isso basta. Não mais augúrios de Minotauro nem sonhos, para que sonhar? Esquece ao que vens, te encerres no exato instante em que te encontras. Não penses em nada, por que pensar?
Não percas tempo em pensamentos, sai de ti, sai de ti, eu sairei de mim agora.”
Dédalo arrasta o filho para a beira do abismo – ele dorme. Despe-o com cuidado.
Levanta-o.
As asas, em seu devido lugar.
As feridas cicatrizadas, não curadas ainda: curadas com o levantar do voo, o passar do vento.
“Ícaro, sentes a largura em tuas asas?”
O pai alisa o corpo nu do filho em pé. Abre os olhos ao infinito.
“Sentes que podes percorrer o mundo com elas e não mais voltar?”
As penas de gaivota, protege da umidade do mar com a cera de abelha.
“Não importa como aqui chegamos ou aonde vais.”
O céu propício. Poucas nuvens, uma leve brisa.
“O que importa é o bater das asas, acelerar o pulso.”
Se chuva, geada ou neve, tudo perdido.
“Queres o outono das estações, tolo que és!”
A flor move as pétalas.
“Não mais augúrios de Minotauro…”
O corvo se aproxima, grasna.
“… nem sonhos…”
A flor gira o caule.
“… para que sonhar?”
O corvo plana sobre Ícaro.
“Esquece ao que vens, te encerres no exato instante em que te encontras.”
A brisa para.
“Não penses em nada, por que pensar?”
Prismas de gotas do mar sobem.
“Não percas tempo em pensamentos…”
Lento.
“… sai de ti…”
Denso.
“… sai de ti…”
Musgo.
“… eu saio de mim agora.”
Dédalo o empurra como a si mesmo, como se Ícaro fosse maior que o pai, como se Ícaro pudesse voar…
Como se Ícaro falasse*
Patricia Tenório
Ficção, 2012
ISBN: 978-85-60650-38-5
Preço: R$ 30,00
136 páginas
Sétimo livro da escritora pernambucana Patricia Tenório, vencedor do prêmio Vânia Souto Carvalho em ficção da Academia Pernambucana de Letras em 2011 e trazendo o selo da Editora Sarau das Letras – RN, Como se Ícaro falasse revive através do mito grego um dos mais antigos desejos da humanidade: o desejo de voar. Ambientado na ilha de Creta, esse “poema-narrativa” nos traz (e faz) questionamentos quanto ao amor, identidade, autonomia e liberdade.
* Prêmio Vânia Souto Carvalho em Ficção – Academia Pernambucana de Letras – PE (2011)