Primeira Parte: O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë

Bem, a longo prazo, devemos cuidar de nós mesmos, e os meigos e generosos têm mais justificativas para serem egoístas do que os tiranos.

(Emily Brontë, p. 74)

Quarta-feira de cinzas, 14 de fevereiro de 2024. Começo a ler um livro novo ainda com o gosto do Carnaval em minhas veias, ainda com o gosto de Os manuscritos perdidos de Charlotte Brontë em minha alma.

Uma das melhores formas de aproveitar e fruir um livro é se preparar antecipadamente para a leitura. Saber um pouco mais da vida do/a autor/a, o contexto em que o livro foi gestado, suas influências, engrandece quem lê, assim como quem escreve esta breve resenha sobre um dos textos mais icônicos da literatura universal: O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë.

Mergulhei, após o Carnaval, com as angústias que todo ser humano sente no corpo e no espírito, em um dos romances mais dilacerantes que li em toda a minha vida. O morro revela nossa alma atormentada, o nosso egoísmo desmesurado, ao mesmo tempo que nos conforta com alguma esperança no final. Acompanhar o romance impossível de Heathcliff e Catherine nos permite olhar para o nosso próprio âmago e afirmar: “Isto poderia ou já aconteceu comigo!”

As doenças mentais – transtorno bipolar, depressão, até mesmo psicose – são apresentadas nos personagens através dos acontecimentos do único romance de uma das irmãs-escritoras-inglesas mais conhecidas, Emily Brontë. Narrando sempre em primeira pessoa do singular – quer seja pelo inquilino do Sr Heathcliff, o Sr. Lockwood, quer seja pela governanta Sra. Nelly Dean, quer seja por Isabella Linton ou pela própria Catherine Earnshall –, acompanhamos a saga de duas famílias que se amam e se odeiam, os Linton e os Earnshaw, em uma cidadezinha do interior da Inglaterra, castigada e agraciada pelo vento, pela beleza e pela loucura ao mesmo tempo. Emily sabe transitar entre os opostos de maneira magistral, assim como nas primeiras pessoas do singular, de uma forma que não nos percamos no texto, de uma forma que compreendamos que, simultaneamente, contemos a bondade e a maldade em nossos corações, e o verdadeiro amor nos salva.

“Abrir os olhos com sinceridade, transformar os demônios em anjos confiantes e inocentes, que não suspeitem ou duvidem de nada e que sempre veem amigos onde não tem certeza de inimigos” (p. 48). A irmã Brontë mais nova Emily, nos alerta da nossa hipocrisia em querermos nos afirmar altruístas e completamente bons. O próprio Heathcliff vai nos revelando aos poucos o bem por trás da máscara tirana que impõe a todos os que o cercam. Mas esbarra no amor verdadeiro dos sobrinhos Hareton e Cathy e retorna para o grande amor da vida inteira, a irmã de criação Catherine.

Dividido em 34 capítulos, como se fossem episódios de minissérie, Emily sempre deixa um gostinho de quero mais, nos provocando a descobrir no próximo capítulo/episódio o que aconteceu com o vilão-mocinho, com a megera-mocinha. A transição bem feita entre o passado e o presente e vice-versa é outro trunfo do texto da irmã Brontë mais nova Emily. Além dos princípios-valores tão importantes na vida do pai metodista e presbítero Patrick Brontë – como vimos em Os manuscritos perdidos.

Mas o que me encantou na leitura, em sete dias, de um dos romances das duas irmãs Brontë mais conhecidas, foi a fragilidade da mente humana, descrita por Emily em 1847, antecipando o que Sigmund Freud somente iria inaugurar no final do século XIX. Após sofrermos esses quatro anos de pandemia, com milhares de mortes e sequelas físicas como resultado da Covid-19, estamos vivenciando tantos casos de sequelas psíquicas, principalmente em nossos jovens, crianças e pessoas da terceira idade. Emily Brontë em O morro dos ventos uivantes alivia a nossa angústia e o nosso medo por tempos sombrios quando nos ensina, com seu único romance, que, apesar de nossas limitações, tudo é possível graças ao verdadeiro amor, toda cura, toda superação, todo perdão.

Segunda Parte: Jane Eyre, de Charlotte Brontë

Eu me importo comigo mesma. E quanto mais solitária, sem amigos e sem sustento, mais eu me respeito.”

(Charlotte Brontë, p. 442)

Pela segunda vez em minha vida, leio um livro após assistir à adaptação para o cinema. O filme é Jane Eyre (2011), com Mya Wasikowska no papel da personagem principal e Michael Fassbender no papel de Edward Rochester. A primeira vez foi Ensaio sobre a cegueira (2008), com Mark Ruffalo e Julianne Moore, adaptado do livro homônimo de José Saramago.

E fiquei muito feliz com o movimento de assistir o filme antes de ler o livro. Porque os personagens de papel vestiram os personagens da tela grande e foi respeitado no cinema o mais importante na literatura, o principal: a essência.

Nessa segunda parte da resenha sobre os livros das irmãs Brontë, é inevitável não fazer uma comparação entre O morro dos ventos uivantes e Jane Eyre. A primeira pessoa do singular na narrativa parece ser o costume da época, com a intenção de aproximar mais quem lê do texto e poder adentrar melhor a mente dos personagens. Talvez pela maturidade, ou mesmo o estilo mais profundo, Charlotte Brontë discorre em seu romance muito mais sobre os livros que gostava de ler e tem uma linguagem mais rebuscada do que Emily Brontë. Charlotte descreve mais o interior das casas, mas também as pradarias, as charnecas, os caminhos tortuosos da personagem principal. Talvez a tradução de Jane Eyre tenha sido melhor do que a de O morro. Mas ambas irmãs conseguem adentrar os adoecimentos (O morro) e a saúde (Jane) psíquicos de suas personagens de maneira magistral, e de maneira à frente do seu tempo, tanto em relação à Psicanálise (ciência que somente seria inaugurada por Freud no fim do século XIX, e Jane Eyre também foi lançado em 1847), quanto ao lugar que a mulher tentava – e muitas vezes não conseguia – ocupar na sociedade machista da época – o que, infelizmente, ainda acontece com muita frequência no nosso século XXI.

O uso da primeira pessoa do singular é realizado de maneira perfeita por Charlotte. Ela, com essa técnica, também aproxima quem lê das técnicas literárias usadas no romance, como por exemplo: “Assim, restrita e simplificada, minha história pareceu mais crível” (p. 110). Ou mesmo: “Um novo capítulo num romance é algo parecido com um novo ato no teatro” (p. 142). Ela aparenta ir construindo o texto à medida que vai escrevendo, numa espécie de metaficção. Aproxima do texto quem lê com a mudança do verbo do passado para o presente. E vamos vivendo a sua história, e vamos crescendo com a personagem, como os bons livros conseguem realizar.

“Quando eu contar para ele meu segredo, você também ouvirá a confidência” (p. 386).

Mas Charlotte vai além. Ela nos apresenta, de maneira veemente, o que costumo chamar de “A filosofia do avião”. Na minha novela 12 horas, lançada em novembro de 2019, no meu aniversário de 50 anos, narrei a filosofia do avião como a necessidade que possuímos de primeiro colocarmos a máscara de oxigênio em nós mesmos, antes de colocarmos na pessoa ao lado que precisa de nossa ajuda, se não, morremos cada um/a de nós e a pessoa ao lado. Em Jane Eyre, a personagem principal se recusa a abrir “mão de metade de mim” (p. 562) para se casar com alguém (St. John) sem amor, sendo “forçada a manter sempre baixa a chama da minha própria natureza” (p. 567).

Sinto-me irmã na literatura de Charlotte e Emily Brontë. Apesar de não haver um parentesco sanguíneo, essas mulheres atravessaram quase dois séculos para me dizer que eu não desista da carreira literária, que as únicas pessoas que devem sempre ditar o nosso destino somos nós mesmas, mesmo se o que escrevemos não seja considerado assim tão bom. A pessoa leitora interna é o nosso maior marco, para quem devemos nos dedicar, dia e noite, na leitura e na escrita, assim como esses quase 30 dias de leitura de “Duas irmãs: em busca de uma melhor Escrita Criativa”, que espero ter realizado na escrita do meu trigésimo primeiro livro, Recife é o meu nome, que será lançado em 21 de novembro de 2024, no meu aniversário de 55 anos.