Helder Herik([1]), A idade de desossar

Emerson Oliveira do Nascimento([2])

 

Somente quando o corpo e o espaço de imagens se interpenetrarem, dentro dela, tão profundamente que todas as tensões revolucionárias se transformem em inervações do corpo coletivo, e todas as inervações do corpo coletivo se transformem em tensões revolucionárias; somente então terá a realidade conseguido superar-se.

(Walter Benjamim)

 

As coisas em geral nunca puderam manifestar-se ao pensamento como coisas.

(Martin Heidegger)

 

            Os prefácios são como verdadeiros menus – tentam aguçar nosso apetite enquanto se dissolve a fronteira que criamos entre o namorico e a compra de algum livro em especial. Os prefácios são os responsáveis pelas primeiras críticas, mas não se trata de qualquer crítica, é a crítica de quem viu o parto. Só nestas raras oportunidades nós podemos, ao contrário dos futuros leitores (e com certeza serão muitos), ler não a obra acabada e finda, mas sim a criação viva entre os rabiscos originais do poeta. Só nestas raras oportunidades podemos refazer toda a angústia da criação – e sugiro isso porque, para mim, o livro de poesias impresso já seja o massivo cheiro de finitude que flui da página impressa, talvez porque reduza a imagem do poeta artesão ou mesmo porque ainda não me acostumei à reprodutibilidade técnica da obra de arte.

            ‘amorte’ me levou inevitavelmente a observar a preocupação do poeta([3]) na construção de cada verso – um turbilhão de palavras e sentidos. A poética de versos sem as superficiais precisões métricas e que parecem rimar sim os sentidos substanciais do eu-poeta. É a “linguagem adâmica” a que já se referira Benjamim. É a busca pela reconciliação entre o criar e o conhecer. É a possibilidade de tornar-se Deus, pois foi através da linguagem que Ele criou o mundo – o verbo se fez carne. É a busca pela superação da dimensão meramente comunicativa da linguagem e a luta pela restauração da sua primeira dimensão – a nomeadora. ‘amorte’ é também algo de lingüístico, é a idéia tratada como elemento simbólico presente na essência das palavras, é uma busca pela restauração do pensar a coisa.

            ‘amorte’ é dialético. Um livro que busca parentesco entre a linguagem divina e a linguagem humana. Um livro onde as palavras são tão caras e significativas ao poeta que mais parecem ocultar uma frase inteira. E o poeta, aqui, comporta-se como quem retornara ao Éden – batizando as coisas, explorando-as até a exaustão por todos os seus sentidos, simplesmente porque nunca as foram para si tão novas. São os olhos deste texto os olhos de alguém maravilhado e fascinado pelo poder divino da descoberta da beleza de coisas até então aparentemente comuns – sua cidade, seu chão, sua arte e a morte. É a (re)criação de sentidos mimeticamente inventados para as coisas. Novos sentidos que correspondam a elas, que mantenham com elas uma relação direta e essencial.

            E nesta exaustão da percepção, o poeta é o que ele pode ver. Arregala bem os olhos, abre bem os ouvidos enquanto aguça seu tato, seu paladar e seu olfato para a (re)descoberta do novo-velho mundo que o cerca. É o pássaro que extenua seus sentidos enquanto se prepara para o primeiro vôo e, aqui, ‘amorte’ é a preparação no ninho. É o espírito sagaz que desbrava primeiro os sentidos de seu mundo – seus valores, seu chão, suas carnes e sua mão – e aqui, mais uma vez, ‘amorte’ também é útero contraindo-se às vésperas do parto.

            O livro que tem pressa de ser, ‘amorte’ traz para o leitor um sentido especial para o tempo – um tempo onírico, um tempo como não dizer: antropofágico, que parece engolir-se, mastigar-se – é o chão que transforma o homem, é o homem que transforma o chão e ambos tornam-se assim antropomórficos: chão-homem e homem-chão. É o corpo que se consome [enquanto andamos sobre crânios]. É o mundo a esculpir o corpo enquanto este baila e caligrafa sobre a terra [pisar-em-chãos]. É a própria vida vista como uma dimensão da linguagem, um sentido codificado da errância e do andar humano depois da expulsão do Éden. O tempo do retorno ao momento da criação quando mais uma vez tudo será genuinamente novo e fantástico – e parece-me que para o poeta, este percurso dar-se-á pelo Agreste. O Agreste libidinoso, o Agreste-indivíduo (puberdade e virilidade), o Agreste corpo físico e gozo da alma, erétil, explosivo e sagrado.

            Mas ‘amorte’ seria ainda um livro que desemboca a morte e tem cheiro de vida – ‘amorte’ é idade de desossar, é hora de desencarno. E aqui, o poeta interliga nascimento e morte, e mostra-nos que ao nascer não deixamos de morrer, da mesma forma que mortos, não deixamos de estar vivos. É o nascimento que é póstumo, é a morte que traz a vida. É o mau que é bom, é o bem que é cruel. [Nunca se diz que amorte / de uma pátria é nascida.// Não tem amorte nascimento, / é toda ela morrida] – é a morte o alimento da vida e não o oposto, é a morte que só surge do que pode alimentar a vida, é a morte que traz o alimento e o novo – e torna-se a morte assim, também antropofágica. É ‘amorte’ que visita o [mocambo] e custa ir na [casa-grande / carne-sem-osso]. ‘amorte’ é indomável, é lanceiro que por prudência usa a doença. Mas ‘amorte’ também é santa vadia [Quando vai seduzir / leva amorte a fita métrica]. E é erótica, e é mãe que tal [galinha de capoeira] choca e gora seus defuntos.

            ‘amorte’ vive mais do [Empirismo] e de [chupar ossos-tutanos]. ‘amorte’ rói de dentro para fora, é gangrena de dentro de nós – do tutano para o juízo, ‘amorte’ nos escolhe pelos ossos. E talvez seja por atacar por dentro que [amorte não mostra quem é] e, assim, o poeta traz a morte para dentro de nós. ‘amorte’ que nasce botão e desabrocha e rasga de dentro-para-fora com ares de surpresa o que sempre nos habitara – a morte. A morte que introduz o ser em uma dimensão temporal e o lança às impossibilidades da vida enquanto sua imagem o vigia. Não se trata da “nadificação” sartriana da vida e da morte, mas sim a morte pensada por Heidegger, algo que preenche os sentidos da vida, o reconhecimento dos limites e da finitude humana – o ser que reconhece seu “ser-para-a-morte” e parte para a construção da vida, agora, sobre a maior exaustão de sua criticidade – é a morte como primeiro passo para um projeto, é uma forma de aprender com a morte a viver –, lições caras em um tempo em que se disseminou o sentido da imortalidade entre nós. O poeta d´amorte não esconde ou eufemiza a morte, aponta-nos apenas que ela existe e que ela é bonita porque é óbvia.

            E assim, sua cidade, seu chão, sua arte e a morte entrelaçam-se sob o frenesi do erótico e da multiplicidade – é um misto de virilidade que o poeta traz nos dentes, mas torna-se ainda interessante notificar uma definição do Homem pelo poeta que salta-nos despropositadamente das entrelinhas quando ele nos diz que neste chão o que há [são carnes / com maiores cortes de ossos], ou seja, o poeta ainda mede os homens pelo seu interior. É o poeta que busca impressões na sua linguagem, mas que também resolve por fazer suas próprias impressões – ele faz incursões na xilogravura – e é este o momento no qual o homem-agreste decide pisar o chão, e o homem-poeta decide ser ouvido. É a idade de desossar, de deixar os ossos à mostra, de rasgar as carnes e mostrar o que o mantém em pé. É algo muito especial – é a inclusão do poeta dentro do espaço público. E é assim que eu particularmente gostaria que os leitores vissem tanto o livro como o poeta – a necessidade de fazer-se ouvir pela Pólis e pelo coração, pois já se responda de passagem à crítica, que o pessimismo da inteligência não deverá jamais prejudicar o otimismo da vontade. ‘amorte’ deve ser lido pelo simples fato de buscar ser.

amorte([4]) 

Útero

 

Prólogo

Com muitas mortes vividas

dissera um dia a Avó

 

“é a morte uma quenga,

dessas quengas-de-tabacão.”

 

amorte, quenga-de-carteado,

(que arromba portas. Cadeados)

 

mata um homem-santo.

Mata um homem, chanbregando.

 

1

Quando d´amorte se fala,

nunca em toda propriedade

 

está o indivíduo falando.

Fala de dentro do escuro,

 

tateando a falação.

É como se amorte

 

engolisse todo o caminho,

sem defecar a direção.

 

2

Das origens d´amorte

ninguém as sabe definidas.

 

Se de uma gruta, uma capela

amorte fora parida.

 

Nunca se diz que amorte

de uma pátria é nascida.

 

Não tem amorte nascimento,

é toda ela morrida.

 

3

amorte,  em todo o seu tempo

de trabalho de operário,

 

nunca trouxera marmitas.

Basta-lhe a coisa-viva.

 

Seja o estômago pejado,

que não lhe oferece a gordura

 

ou cambitos, só os ossos,

de onde lhe suga os tutanos.

 

4

amorte se mostra em terras

onde a lâmina, roçando,

 

não encontre ali somente

o chão firme, enterrado.

 

Mas a escavadeira encontre,

no corte mais lateral,

 

vários ossos estrumados

num só dia de funeral.

 

5

Ora pode ser amorte

molhada como um rio.

 

Molhada além da língua

(rio manso, de carne).

 

Molhada não do que engelha,

desforrando o corpo.

 

Um molhado que alaga

as estiagens de um vivo.

 

6

Ao enxugar seus defuntos,

do alagado Pantanal,

 

passa ferro amorte,

aos corpos que engelharam.

 

Passa do sulco ao teto;

entre o peito, que desbotou

 

a carne (viva) e o sobrecu.

Carne já apodrecida…

 

7

amorte freqüenta sempre

as mesmas bibliotecas.

 

Bibliotecas sempre cheias

para que se instrua melhor.

 

Que é sempre se habilitando,

tanto as Tragédias-Gregas

 

quanto as tragédias-Agreste:

o Padre matando o Bispo.

 

8

amorte a se instruir melhor,

refaz periodicamente

 

(na pelanca do abdômen)

sua cartilha terrorista.

 

Não a cartilha de leitura

que só a vivos tem serventia.

 

É somente cartilha de corte,

de faca rombuda, que fatia.

 

9

A alfabetização d’amorte

é mais de espinhos, calos,

 

do que a prática em livros

(acumulada erudição).

 

É mais de quem se engancha

numa sílaba de arame.

 

É mais de contas que leituras.

Mais adiciona que fraseia.

 

10

A alfabetização d’amorte

consta mais do empirismo

 

de chupar ossos-tutanos,

que sentada, folheando enciclopédias.

 

Nem ataca pelas leituras,

vai mais pelos manequins.

 

Manequins de qualquer tamanho,

que tudo cabe em sua fome.

 

 

____________________________

(1) Nascido em Garanhuns – PE, 1979, Helder Herik ensina Filosofia e Literatura nos colégios: Quinze de Novembro, Santa Sofia e ACIG. Escreve para os jornais: O Século, O Mafuá e u-Carbureto, sendo editor deste último. É, também, um dos fundadores da Sociedade dos Poetas Vivos – João Cabral de Melo Neto. Publica suas crônicas no blog: http://blogdohelderherik.blogspot.com/. E-mail: helderherik@hotmail.com

(2) Historiador.

(3) A partir de agora, sempre que me referir ao poeta, refiro-me ao amigo.

(4) Primeiro trecho do poema (em seguida vem ‘Labuta’ e ‘Prudência’) que dá nome ao livro ‘amorte’, Editora Bagaço, 2008. Contém ainda ‘Mundaú’, ‘Xiloma’ e o posfácio “Posteridade” escrito por Mário Rodrigues do Nascimento.

PS: Helder Herik foi apresentado a mim por Lucas Cavalcanti: lucascavalcanti.b@hotmail.com