
Os sinos tocam no final de cada mês
Se você não crê,
crê que você mesmo foi feito em série.
Anda sem nome pelas ruas,
compra ibuprofeno e espera o futebol,
torcendo por asfaltos e edifícios.
As redes sociais garantem que rostos
iguais ao seu seguem o mesmíssimo você.
Mas não parece suficiente.
*
Se você não tem fé,
tem fé na carne e o que ela pesa,
às vezes de insônia e algum desejo.
Despojo de outras taras, os ossos:
eles se inclinam conforme cheiros e risadas.
É preciso ganhar dinheiro para o sustento das fotos e do mínimo álcool que o livra da própria cabeça.
*
Se você não acredita,
acredita que o destino vem
do petróleo e seus derivados.
E sabe: a propaganda é a única verdade.
A rede mundial de computadores
adivinha o seu horóscopo.
Só o improviso reza. Mas você
pergunta ao Google como rezar.
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Domingo
Dentro de mim
pessoas estão cozinhando.
Em vão, um homem passa cola
na sola do seu sapato.
Um menino amanhece cedo
no mais cedo
do seu sangue.
As lixeiras acordarão vazias.
*
Dentro de mim,
o sexo de duas pessoas
que se reencontram:
que ela goze
porque ele já gozou.
Em seguida há um choro,
não sei de quem,
e a cena acaba.
*
No pátio os limões parecem gatos.
Sob um incêndio de formigas.
restam ossos de churrasco.
(A beleza da fome se espelha
no gramado.
O gramado pede água
aqui dentro).
*
Voltarei ao trabalho
dentro de uma mochila,
no almoço, com os amigos
que vierem. Talvez ninguém.
*
Apenas dentro,
os olhos muito verdes de minha mãe,
as sardas de um menino ou menina,
que poderá amar minha filha,
e um livro que morrerei desejando ler,
impossível,
sob a geada deste mês.
*
Algumas coisas estão fora
como sempre: as estantes,
tudo o que pinga,
os códigos de barra,
chocolates em barra,
e a partida de futebol,
que meu time empatou,
depois de estar ganhando.
Altair Martins (Porto Alegre, 1975). Bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — ênfase em tradução de língua francesa —, mestre e doutor em Literatura Brasileira na mesma universidade. Ministrou a disciplina de Conto no curso superior de Formação de Escritores da UNISINOS entre 2007 e 2010. É professor da Faculdade de Letras e de Escrita Criativa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), atuando no Programa de Pós-graduação. Coordena o projeto de pesquisa O fantástico em tradução. Tem textos publicados em Portugal, na Itália, França, Argentina, no Uruguai, na Espanha, Hungria, em Luxemburgo e nos Estados Unidos. Ganhou, entre outros prêmios, o São Paulo de Literatura (2009, com o romance A parede no escuro) e o Moacyr Scliar (2012, com os contos do Enquanto água). A peça teatral Hospital-Bazar (Porto Alegre: EdiPucrs, 2019), o romance Os donos do inverno (Porto Alegre: Não editora, 2019) e Labirinto com linha de pesca (Porto Alegre: Diadorim Editora, 2021) são suas últimas publicações. Ministrante, desde 2019, da disciplina Oficina de Poesia na especialização Lato Sensu em Escrita Criativa Unicap/PUCRS (2019.2). Contatos: altairt.martins@pucrs.br; www.altairmartins.com.br