Foto de Valmir Michelon

Os sinos tocam no final de cada mês

Se você não crê,

crê que você mesmo foi feito em série.

Anda sem nome pelas ruas,

compra ibuprofeno e espera o futebol,

torcendo por asfaltos e edifícios.

As redes sociais garantem que rostos

iguais ao seu seguem o mesmíssimo você.

Mas não parece suficiente.

*

Se você não tem fé,

tem fé na carne e o que ela pesa,

às vezes de insônia e algum desejo.

Despojo de outras taras, os ossos:

eles se inclinam conforme cheiros e risadas.

É preciso ganhar dinheiro para o sustento das fotos e do mínimo álcool que o livra da própria cabeça.

*

Se você não acredita,

acredita que o destino vem

do petróleo e seus derivados.

E sabe: a propaganda é a única verdade.

A rede mundial de computadores

adivinha o seu horóscopo.

Só o improviso reza. Mas você

pergunta ao Google como rezar.

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Foto de Louis Scur Carrard

Domingo

Dentro de mim

pessoas estão cozinhando.

Em vão, um homem passa cola

na sola do seu sapato.

Um menino amanhece cedo

no mais cedo

do seu sangue.

As lixeiras acordarão vazias.

*

Dentro de mim,

o sexo de duas pessoas

que se reencontram:

que ela goze

porque ele já gozou.

Em seguida há um choro,

não sei de quem,

e a cena acaba.

*

No pátio os limões parecem gatos.

Sob um incêndio de formigas.

restam ossos de churrasco.

(A beleza da fome se espelha

no gramado.

O gramado pede água

aqui dentro).

*

Voltarei ao trabalho

dentro de uma mochila,

no almoço, com os amigos

que vierem. Talvez ninguém.

*

Apenas dentro,

os olhos muito verdes de minha mãe,

as sardas de um menino ou menina,

que poderá amar minha filha,

e um livro que morrerei desejando ler,

impossível,

sob a geada deste mês.

*

Algumas coisas estão fora

como sempre: as estantes,

tudo o que pinga,

os códigos de barra,

chocolates em barra,

e a partida de futebol,

que meu time empatou,

depois de estar ganhando.


Altair Martins (Porto Alegre, 1975). Bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — ênfase em tradução de língua francesa —, mestre e doutor em Literatura Brasileira na mesma universidade. Ministrou a disciplina de Conto no curso superior de Formação de Escritores da UNISINOS entre 2007 e 2010. É professor da Faculdade de Letras e de Escrita Criativa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), atuando no Programa de Pós-graduação. Coordena o projeto de pesquisa O fantástico em tradução. Tem textos publicados em Portugal, na Itália, França, Argentina, no Uruguai, na Espanha, Hungria, em Luxemburgo e nos Estados Unidos. Ganhou, entre outros prêmios, o São Paulo de Literatura (2009, com o romance A parede no escuro) e o Moacyr Scliar (2012, com os contos do Enquanto água). A peça teatral Hospital-Bazar (Porto Alegre: EdiPucrs, 2019), o romance Os donos do inverno (Porto Alegre: Não editora, 2019) e Labirinto com linha de pesca (Porto Alegre: Diadorim Editora, 2021) são suas últimas publicações. Ministrante, desde 2019, da disciplina Oficina de Poesia na especialização Lato Sensu em Escrita Criativa Unicap/PUCRS (2019.2). Contatos: altairt.martins@pucrs.br; www.altairmartins.com.br