* ALMEIDA, Oleg. Memórias dum hiperbóreo. Apresentação: Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008, p. 9-11.

 

I.

 

Quem sou eu?

Uma gota de tinta lilás

que balança na ponta da pena,

contendo em si toda a sabedoria do mundo

a começar por Tales?

A própria pena arrancada a um ganso qualquer

pela destra dum sábio hipermetrope?

O ganso que mora num sítio,

de tão sossegado, quase paradisíaco,

e passa dias inteiros a chapinhar,

junto com outros gansos e patos,

numa lagoa esverdeada?

O sítio que se situa

no meio duma vasta campina

rica em ervas daninhas e flores exuberantes:

ninguém consegue localizá-lo,

porém todos sabem que existe?

Essa tal de campina,

cujo nome autêntico me saiu da cabeça,

fazendo parte dum país extraordinário,

dado a brincadeiras e cheio de desespero?

Esse país singular,

o da esfera e do losango,

dos músculos duros e corações macios,

que conquistara – disso não tenho dúvida – todo o planeta,

se fora menos sentimental?

O nosso planeta veloz

que voa através do espaço

e muda, e por vezes, de cor e de rumo,

embora de sua órbita nunca se ausente

nem deixe de ser azul?

O espaço caótico e gelado

que engloba milhões de planetas iguais ao nosso,

berço do evangelho e da barbárie,

apenas um pingo de tinta lilás

que balança, teimoso, na ponta da pena divina:

está por cair, mas não cai?

Quem sou eu neste jogo de sombras,

pergunto-me a mim mesmo,

não acho resposta satisfatória

e adormeço zangado.

…………………………………………………………………………………………………………………….

Olhai, ó Senhor, para mim

com Vosso sorriso bondoso e complacente,

dai-me um pouco de luz olímpica;

perdoai a vontade insana

de ler o final da história, antes que seja escrito,

de quebrar, com alarde, a casca da noz sagrada

e comer o miolo,

de penetrar o impenetrável!…

Sei que não sei de nada;

confesso, a contragosto, que nada conheço,

que sempre me escapa a verdade sutil,

e fica a saudade do Éden desmoronado.

A minha quadra tem cinco alexandrinos,

o meu passado carbonizado

está presente em tudo o que faço hoje.

Sinto-me oco.

Preciso de paz, ó Senhor,

de afeto, de compreensão,

duma força a guiar-me.

Sou homem…

Foram medíocres as escolas que terminei,

foram ruins as ideias que me inspiraram,

talvez tenham sido inúteis os meus sacrifícios.

Quem sabe perder, nunca perde a luta!

…………………………………………………………………………………………………………………….

Sou Crates de Tebas,

o último dos mendigos que se arrasta –

réprobo, maltrapilho, filósofo –

pela estrada da vida,

entrando nas casas alheias sem papas na língua

nem boas-vindas.

Sou Hermes, o Mensageiro,

que ultrapassa a correr o tempo alígero

e salta as maiores montanhas.

Sou ínfimo e sublime,

como só pode ser um pedaço de carne dotado de espírito:

a minha vitória resulta das minhas fraquezass,

o cosmo, que me enclausura, íntegro cabe no meu pensamento.

Sou um molusco tirado da concha

e uma das bólides que desafiam o céu noturno.

Sou homem.

 

** ALMEIDA, Oleg. Antologia Cosmopolita. Apresentação: Affonso Romano de Sant’Anna. 1. ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013, p. 9 e 21.

 

Introdução  

 

Leiam-me, por favor.

Não precisam gostar de meus textos, contanto que os conheçam. Escritos, ao longo dos anos, em português, russo ou francês, far-lhes-ão companhia. Se lidos de modo cordial, darão margem a críticas e sorrisos; se lidos por ócio, produzirão, sabe lá o diabo, certo incômodo. Mesmo quem os detestar não terá prejuízo.

Leiam-me a qualquer momento: de noite e de dia, nas horas vagas e saturadas, em pleno verão e no ápice do inverno. Leiam-me em toda parte: à mesa de seu jantar e na sala de espera do médico, recostados em seus sofás e de pé na parada de ônibus. Não existem lugar nem horário ruins para lerem um livro. Saciem-se de poesia, misturem-na com churrascos e noticiários – eis o meu desafio!

Leiam-me por motivos sérios e nulos, cientes de a leitura imotivada ser muito melhor que a compulsória. Talvez fiquem bravos com minha filosofia e meu estilo lhes cause estupor. Não carreguem o cenho: até o veneno da cascavel planteia seu lado se não salutar pelo menos útil.

Uma vez lido, ponham este meu livro em sua estante ou joguem-no fora. Pouco importa o paradeiro futuro dele. Podem esculhambá-lo quanto quiserem, mas não me censurem por tê-lo escrito: fiz isso movido pela necessidade de conversar com alguém que me compreendesse. A compreensão é um dos pilares da irmandade universal.

Não procuro por seus favores: o público justifica, em si, o trabalho do escritor. O fato de uma obra cair no esquecimento, colhendo a outra louros e galardões, não altera nada. O essencial é que ambas as obras tenham leitores, escassos ou numerosos.

E não se encabulem, se pegos com minhas quimeras na mão, porque ler é regar as sementes da imortalidade.

 

Clímax

 

Neste momento

não há mais temor nem decência, nem mesmo bom-senso:

nosso desejo é a primeira e única lei do mundo.

Gira, ó mundo, e pula da órbita fora e faz-te em pedaços –

somos teus amos selvagens, teus anjos seviciadores!

Neste momento

as nossas moléculas se arrojam, se juntam e se ajustam,

dando início à explosão duma supernova,

nossas salivas fervilham e nossas mãos estão livres

para fazer tudo quanto quiserem, e nossos corpos se tornam

vastos, imensuráveis, de sorte a englobarem

todas as alegrias terrenas, até a última chispa.

Neste momento,

que passa e nunca volve (caso volvesse,

seria a réplica trivial duma obra-prima),

desafiamos a Convenção e mandamos a Regra às traças

em nome da cósmica força que nos atrai um à outra,

e tu me chamas, terna e simplesmente, de teu amado

e adormeces, cansada e cheia de dengues, cá no meu peito,

sem suspeitar que sejamos, por um sexagésimo de segundo,

Cronos e Reia, sem mais nem menos, gulosos

pais soberanos do próximo século d’ouro.

 

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