Da experiência criadora

Patricia (Gonçalves) Tenório

01/11/2016

 

A doutora em Linguística e Estudos em Línguas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Cecília Almeida Salles, analisa em Gesto inacabado: processo de criação artística,[1] a questão da experiência na produção da obra de arte e os limites impostos pelos próprios artistas a si mesmos para a potencialização da sua poiesis.

Cecília é a favor da perspectiva do trabalho, do processo contínuo, da pesquisa, o que podemos encontrar em vários artistas elencados em Gesto inacabado e que relacionarei com alguns livros estudados por escritores em busca de uma Escrita Criativa, em especial, na Pós-Graduação de mesmo nome da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre – a PUCRS.

Antes de tudo, explico a necessidade extrema de escrever sobre o assunto – a experiência –, e relacionar com os livros elencados. Desde que comecei a escrever, procurei me impor limites a serem ultrapassados, na tentativa de elevar a qualidade da minha escrita: Oficinas Literárias no Brasil (Recife e Porto Alegre – PUCRS), e exterior (Sorbonne – Atelier d’Ecriture), Filmmaking na New York Film Accademy, em Nova York, EUA, Residência de Artistas em Val-David, Canadá, Mestrado em Teoria da Literatura na Universidade Federal de Pernambuco, Aluna Especial e participante da seleção para Doutorado/2017 em Escrita Criativa da PUCRS.

Ao invés de fins, todos esses limites e deslocamentos que impus aos meus corpo e alma trazem à tona aspectos da minha subjetividade que nunca transpareceriam sem a provocação da experiência, e com isso, a escritora que descobri em mim desde 2004 nunca alargaria as suas fronteiras, de maneira lenta, construindo passo a passo, letra a letra, o caminho da melhor escrita possível. E para esse espaço do Grupo de Estudos em Escrita Criativa, o exercício de Novembro, 2016 – feito vocês verão mais abaixo – tem a ver tanto com a experiência quanto com o movimento que ela desperta.

Voltando ao Gesto inacabado, descobrimos que o poeta e diplomata brasileiro João Cabral de Melo Neto no ensaio “A psicologia da composição”, acredita que a seleção de acontecimentos da realidade é a verdadeira originalidade do artista, uma seleção que é composição, que é 5% de inspiração e 95% de trabalho, feito concorda em Iniciação à estética[2] o poeta, escritor, dramaturgo brasileiro Ariano Suassuna, quando afirma que não basta a Forma (ou intuição criadora), mas é preciso a Técnica (ou estudo contínuo) e o Ofício (ou trabalho diário) para transformar em obra de arte e não mero artesanato aquilo que temos em nossas mãos.

“A arte é filha da liberdade”, já dizia o poeta e filósofo alemão Friedrich Schiller. Mas Cecília alerta que a liberdade absoluta é desvinculada à intenção, não leva à ação, ou seja, não gera obras.

O poeta e filósofo russo (Vladimir) Maiakóviski em (Cecília) Salles, em (Patricia) Tenório, em… afirma que procura escrever sobre o que viveu; o dramaturgo brasileiro Dias Gomes é levado a escrever compulsivamente pela angústia, pela insatisfação consigo mesmo; a teórica e artista plástica brasileira, nascida na Polônia, Fayga Ostrower, afirma que nos interessamos e buscamos (em termos de arte) por aquilo que já possuímos em nós, mas de maneira potencial.

Esses artistas – e muitos outros elencados por Cecília Almeida Salles em Gesto inacabado – comprovam o que o semiólogo e romancista italiano Umberto Eco insiste no “Pós-escrito a O nome da rosa”: de que devemos impor obstáculos – e que maiores obstáculos senão os acontecimentos da vida? – para potencializar a obra de arte.

O escritor francês, nascido em Paris, André Gide, no Diário dos Moedeiros Falsos[3]Diário que apresenta a construção do seu romance Os moedeiros falsos[4] – insiste para que deveria escrever como se fosse o “último livro”, “verter-se por inteiro”, e com isso (também) potencializar a criação.

Enquanto isso, em O leitor comum,[5] a escritora e editora inglesa, nascida em Londres, analisa Robson Crusoé, e seu autor, o jornalista e escritor conterrâneo Daniel Defoe, que por sua vez transforma seres reais que vivem na violência e na pobreza em personagens dos quais tudo retira – deixa-os na miséria – para provocar o seu empenho e superação.

Outro livro estudado nesse caminho de aperfeiçoamento da Técnica e do Ofício da Escrita Criativa é A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores,[6] do roteirista americano Christopher Vogler. A partir de sete arquétipos do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (HERÓI, MENTOR, ARAUTO, GUARDIÃO DO LIMIAR, CAMALEÃO, SOMBRA E PÍCARO) e doze estágios da Jornada do Herói do pesquisador em mitologia americano Joseph Campbell (1 – MUNDO COMUM, 2 – CHAMADO À AVENTURA, 3 – RECUSA AO CHAMADO, 4 – ENCONTRO COM O MENTOR, 5 – TRAVESSIA DO PRIMEIRO LIMIAR, 6 – TESTES, ALIADOS E INIMIGOS, 7 – APROXIMAÇÃO DA CAVERNA OCULTA, 8 – PROVAÇÃO, 9 – RECOMPENSA (APANHANDO A ESPADA), 10 – CAMINHO DE VOLTA, 11 – RESSURREIÇÃO, 12 – RETORNO COM O ELIXIR), Vogler vai nos apresentando as dificuldades a serem superadas pelo Herói, pelo escritor, ou pelo ser humano de uma maneira geral para conseguir trilhar da melhor maneira possível a maior viagem de todos os tempos: a nossa própria vida.

Quis neste breve estudo, falar um pouco sobre as restrições de limites (ou de liberdade), ou mesmo a proposição de experiências a todo a artista para alargar, alavancar, potencializar a criação. Além dessas experiências “programadas”, intencionais, a vida nos prepara surpresas, tais como apresentei no arquivo abaixo em anexo “A experiência de um(a) artista da fome” quando na minha viagem para a Romênia-Alba Iulia e para a capital tcheca Praha (Praga) e no fotofilme desta postagem de Novembro de 2016, “(des)carnaval(ha)”.

O exercício proposto às escritoras Bernadete Bruto e Elba Lins foi justamente tentar captar em filme – de celular – esse acaso que nos toca, da mesma maneira que o punctum de Roland Barthes, e nos provoca poemas, contos, ensaios poéticos. E vice-versa. Pois a imagem, quer seja em movimento, quer seja estática, nos ronda em busca de um “receptáculo” a preencher, uma “carcaça” que o poeta romântico inglês John Keats em carta a Woodhouse afirma veementemente: “O poeta é a mais impoética das criaturas de Deus”.[7] Ele está sempre se esvaziando e sendo preenchido pela Poesia, está sempre adentrando e preenchendo outras criaturas, o sol, o mar, a lua. Os rouxinóis.

Que venham as experiências do Grupo de Estudos em Escrita Criativa do mês de Novembro de 2016!

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(1) SALLES, Cecilia Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: FAPESP: Annablume, 1998.

(2) SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética. Texto revisado e cotejado: Carlos Newton Júnior. 5. ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2002.

(3) GIDE, André. Diário dos Moedeiros falsos. Tradução: Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, (1927 in) 2009.

(4) GIDE, André. Os moedeiros falsos. Tradução: Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

(5) WOOLF, Virgínia. O leitor comum. Tradução: Luciana Viégas. Rio de Janeiro: Graphia, 2007.

(6) VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores.  Tradução e prefácio: Ana Maria Machado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

(7) KEATS, John. Ode sobre a melancolia e outros poemas. Organização e tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Hedra, 2010.

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Bernadete Bruto

bernadete.bruto@gmail.com

(Câmera: Bernadete Bruto)

A caminho de sua própria casa

Experiência Com música e filmagem

Acreditou nela… Perdeu-se no caminho! Não sabe mais qual a direção tomar. Para onde vai.  Como ir sozinho? Olha para o trânsito dentro deste carro que lhe conduz ao mesmo caminho de sempre. Cotidianamente. Sem ânimo. Sem anima. Só. Na confusão do trânsito, olhos procurando por ela… em cada carro. A música tocando fala alguma coisa de casa… Me leve para casa! É o que ele gostaria de poder falar, de ouvir… Se pudesse… Já faz tanto tempo… Por que ele ainda persiste nesta canção, porque o lamento? Ahhhh ah ah ah ah ah ah ah! Ainda? Quem mandou confiar nela? Entregar toda sua confiança sem reservas para uma pessoa. Que ingenuidade! Hum, o  ah ah ah da canção é por isso! Raiva! Ele sente raiva de si ainda. Por ter sido bobo. Porque ficou pedindo não me deixe. Me leve para casa! Ai quanta dor havia naquele ser! O tempo parou com o trânsito. Ele agora olha como ainda está congelado. Mudou seu olhar que leva para outra direção. De volta ao passado como esses carros passando contrariamente a sua direção e vontade. Olhos que buscam um sentido. O sentido foi todo ensinado por ela… Palavra por palavra. Verdade por verdade. Ele ficou vazio. Desconectado.

Hoje, neste carro, a mulher de coração leve, retornando de lembranças amargas, olha finalmente para si. Expande seu olhar, sabendo que foi difícil, mas conseguiu! Sente-se livre após a dor e entende que a sua casa é muito mais além do que alguém. Alguém que talvez nem merecesse que o coração de uma mulher fosse capturado por promessas feitas por sua voz masculina tão insinuante. Coitado desse alguém! Um homem que talvez nem soubesse que não poderia ter comando de seu próprio destino.

De volta ao presente, no meio do trânsito, no fim da música, a mulher enxerga para além da confusão diária. Libera seu coração das promessas ecoadas pela voz daquele pobre homem e vê o caminho que as árvores apontam. A simplicidade da vida, da sua própria natureza celestial. Reconhece sua verdadeira casa, o perdoa e sorri.

 

Recife, 1 de novembro de 2016.

 

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Elba Lins

elbalins@gmail.com

(Câmera: Débora Quintans)

Que maravilha de Concerto! O Teatro Santa Isabel em festa, lotação esgotada, os músicos impecáveis aguardavam o sinal do maestro para iniciarem a tão esperada apresentação.

E na plateia, estava eu, ansiosa. Duas horas de muita emoção. Na primeira parte do concerto foram apresentados vários números de blues e na segunda parte o jazz nos encantou.

Voltei para casa ainda sob o fascínio da apresentação e resolvi terminar a noite com vinho e boa música. Após ouvir Astor Piazolla, Nina Simone, Diane Krall, eu ouvi John Coltrane. Estava ouvindo “Aisha”, quando lembrei de Sérgio…

Aquela música tinha sons que me remetiam ao disco de vinil acabando de tocar, e rodando infinitamente, enquanto nós, cansados de amar não tínhamos sequer coragem de erguer os braços para desligar o som.

Fiquei escutando a música e me afastando de toda a alegria que fora minha noite até aquele instante. Só chegava até mim o lamento… e mesmo quando quis dançar para tentar extrair algum som que me animasse, que me fizesse voar para além daquele instante, eu nada consegui. Eu dançava apenas minha solidão. Então caí por terra por não conseguir voar.

 

O anjo que tocou para mim

Arranhou minha alma

Queria voar com ele por entre estrelas

Mas a frágil corda dos meus sentimentos

Se rompeu

E eu que viajaria entre estrelas

Acabei caindo na terra fria

 

 

(Réquiem para um amor Saudade ao som de Blues e Jazz)

Elba Lins 06.11.2016.

Escrita para o GEEC, a partir da música AISHA de John Coltrane.

Com base na história e na música foi feito o Vídeo de mesmo nome)