Não mais temas o calor do sol…

(Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, p.179)

Existem livros que me imobilizam, antes mesmo de abrir a primeira página. Passo décadas postergando o início da leitura, ou quando consigo iniciá-la, só alcanço vinte e cinco páginas. É o caso de Mrs. Dalloway, romance da escritora inglesa Virgínia Woolf.

Tentei ler em Não consegui. Em 2014. Idem. Um pouco mais de quatorze anos, e destravo a leitura, ainda sem saber ao certo o motivo do bloqueio literário. Acompanho um dia na vida de Clarissa Dalloway, dama da sociedade inglesa do começo do século XX, e a preparação para uma festa que irá oferecer esta noite.

Que louco somos, pensava ela, atravessando Victoria Street. Só Deus sabe como se ama a isto, como se considera a isto, compondo-o sempre, construindo-o sempre em torno de nós, derribando-o, criando-o de novo a cada instante; até as últimas mendigas, as mais baixas misérias dos portais (bebem a sua ruína) faziam o mesmo; impossível, ela o sabia, impossível salvá-las com leis parlamentares, por esta simples razão: amava a vida.

(Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, p.8)

Utilizando-se da técnica do fluxo de pensamento, Woolf/Dalloway transita de maneira livre e leve pelas ruas de Londres (nos encantando com as ruas de Londres), ao mesmo tempo que mergulha no mais profundo ser, não somente de Clarissa (uma burguesa, casada com um articulador da Câmara dos Comuns Richard, mãe da jovem de dezessete anos Elizabeth), mas de todos os personagens.

Como necessitava ela, Clarissa, que os outros manifestassem agrado quando chegava,
pensou, voltando para Bond Street, aborrecida, pois era uma tolice ter segundas intenções para fazer as coisas. Antes ser dessas criaturas como Richard, que faziam as coisas por si mesmas; enquanto ela – pensava, esperando para cruzar –, ela não as fazia simplesmente, por si mesmas, mas para que os outros pensassem isto ou aquilo; uma perfeita idiotice, sabia-o (agora o policial erguia a mão), pois ninguém nunca se deixava iludir novamente. Oh! se pudesse viver de novo! pensou, ao pisar a rua, como não havia de ser diferente!

(Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, p.13)

Acompanhamos Clarissa pelas ruas de Londres, pelos caminhos do passado, e conhecemos Peter (ex-namorado), Hugh (amigo de infância), Sally (mais do que amiga da juventude). E vamos descobrindo que Clarissa não é tão superficial assim, e que poderíamos ser exatamente assim, quando desbravamos a “floresta cheia de folhas, a alma” de Mrs. Dalloway, nos movimentando para fora, da mesma maneira que nos movimentando para dentro, até constatarmos que, eu e Clarissa, temos a mesma idade: cinquenta e dois anos.

Enquanto intuímos o motivo para o bloqueio de leitura (e também o bloqueio para iniciar a escrita desta breve resenha), seguimos o passeio pelas ruas de Londres com os personagens, em busca de técnicas (refinadíssimas) de Escrita Criativa.

Uma das formas de ler o livro, seria a festa de Clarissa como uma grande metáfora do/a escritor/a moderno/a – se procura os aplausos, ou se escreve para “matar a fome de sentido” através da arte. Vejamos o trecho abaixo, quando adentramos o pensamento do romântico Peter e sua imaginação criadora.

Bem, diverti-me; sempre foi alguma coisa, pensou, olhando para os oscilantes vasos de pálidos gerânios. Um prazer desfeito em pó, pois era meio inventado, como muito bem o sabia, aquela aventura com a moça; fabricada, como se fabrica a melhor parte da vida, pensou – como a gente fabrica a si mesmo; a vida; como se inventa uma deliciosa diversão, e qualquer coisa mais. Era esquisito, e inteiramente verdade; tudo o que não se podia compartilhar… esvaía-se em pó.

(Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, p.55-56)

Outra técnica refinadíssima é aquela da função. Todo acontecimento, todo personagem tem uma função, uma necessidade no texto, simboliza algo que mais adiante irá se revelar e nos mostrar porque antes foi mencionado. Por exemplo, um jovem chamado Septimus se suicida, e o trágico acontecimento, aparentemente desconexo do conflito principal, repercute em Peter, reverbera em Clarissa. Vejamos.

“E, no entanto – pensava Peter Walsh, enquanto a ambulância [intuímos que com Septimus] dobrava a esquina, embora ainda se lhe ouvisse a campainha na rua próxima e depois mais longe, em Tottenham Court Road –, este é um privilégio da solidão: pode a gente fazer o que bem nos parece. Pode-se até chorar, se ninguém está olhando.”

(Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, p.146)

[…]

Que tinham os Bradshaws [Dr. William Bradshaw era médico de Septimus] de falar em morte na sua festa? Um jovem se havia suicidado. E falavam disso na sua festa – os Bradshaws falavam de morte. Suicidado… mas como? sempre que lhe falavam num acidente, sentia-o, logo, em si mesma; o seu vestido em chamas, o seu corpo carbonizado. Jogara-se de uma janela.

(Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, p.176)

Mas o que me assustou, e que talvez tenha sido o motivo durante esses quase quinze anos de resistência na leitura de Mrs. Dalloway, é como Clarissa é uma possibilidade minha, assim como a de tantas mulheres, assim como a da autora que conseguiu realizar aquilo que a sua personagem principal admirava, mas lhe faltava a coragem (ou o desespero) para ir até o fim.

Ela uma vez lançara um xelim na Serpentina, nada mais. Mas ele [Septimus] jogara a si mesmo. Os outros continuavam a viver (devia voltar; os salões ainda estavam cheios; ainda chegava gente). Eles (todo o dia pensara em Bourton [cidade onde se reunia com os amigos na juventude], em Peter, em Sally), eles envelheceriam. Mas havia uma coisa que mais importava; uma coisa, emaranhada pelas conversas, desfigurada, obscurecida, na própria existência dela. Clarissa, uma coisa que se desgastava, dia a dia, em corrupção, mentiras, conversas. Essa coisa, ele [Septimus] a havia preservado. A morte era um desafio. A morte era uma tentativa de união ante a impossibilidade de alcançar esse centro que nos escapa; o que nos é próximo se afasta; todo entusiasmo desaparece; fica-se completamente só… Havia um enlace um abraço, na morte.

(Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, p.177)

E eu, que há uma hora e meia luto para escrever esta breve resenha, deste romance que batalhei para ler, na véspera do lançamento de meu vigésimo segundo livro, no sonho em começar a escrever, na próxima semana, meu vigésimo terceiro, agradeço a Virgínia, a Clarissa por me retirarem da paralisia, do túmulo como dizia Clarice Lispector ao terminar de escrever A hora da estrela, e sentir, como a melhor amiga de Mrs. Dalloway, Sally/Lady Rosseter afirma ao final do romance:

“– Que importa o cérebro – disse Lady Rosseter, levantando-se –, comparado com o
coração?”


(Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, p.187)