Preta, preta, pretinha.
(“Preta pretinha”, Novos Baianos)
Quando fevereiro chegar,
Saudade já não mata a gente.
(“Quando fevereiro chegar”, Geraldo Azevedo)
Eles me trouxeram para morrer neste lugar. Eles não, ela. Alta, branca e riquinha. O tipo de pessoa que nunca seria considerada digna de compaixão, quando a minha história for descoberta e publicada na imprensa nacional.
Porque um dia alguém vai se lembrar da cachorrinha Labrador que apareceu na casa da professora de música dos filhos dela. Aliás, na garagem do edifício da professora dos filhos de Karla.
Eu passei três meses – sim, três meses – vagando pelas ruas da cidade, que poderia ser qualquer cidade, no litoral ou no interior. Provei de tudo – lixo, gasolina, osso e galinha podres. Não me importava não. Qualquer coisa servia para encher a barriga que não parava de roncar. A fome era tanta que eu não via carro, bicicleta, moto, caminhão quase me atropelando, nas ruas daquela cidade, que poderia ser no litoral ou no interior.
Segui um instinto, talvez de fêmea, mãe de umas três ninhadas, pelo menos – esqueci de contar –, pois os mamilos foram usados, foram sim, pode ver pelo tamanho que eles se apresentam agora. Devo ter sido uma boa mãe, boa parideira e alimentei bem. Mas não lembro de seus rostos, quantas fêmeas, quantos machos, se puxaram a mim ou aos seus pais.
Fui namoradeira, fui sim. Mas desvio do caminho de se contar bem uma história. Não é romance, é drama, talvez tragédia, talvez. Você é quem vai dizer, ou julgar, ou considerar história boa, história ruim. Eu sei que cheguei, depois de uns três meses zanzando pelas ruas de qualquer cidade, cheguei na casa da professora de música dos filhos de Karla. A professora não podia me criar, e convenceu M. e B. a me levarem para a casa deles, que era a mesma casa de Karla. E por que não digo seus nomes, de M. e B., só coloco as iniciais?
Porque eles me amaram. De um jeito que humano ama de verdade os animais. Sem querer nada em troca, somente me dando carinho, e pedindo com jeitinho para a mãe me adotar. Ela não queria. Karla nunca gostou de bichos, e a família havia perdido um Yorkshire fazia pouco tempo. M. e B. insistiram. Eu lancei aquele olhar típico de Labrador, e a mulher alta, branca e riquinha me adotou, não aguentou o meu sorriso.
Mas hoje estou aqui, neste lugar. Um lugar paradisíaco, é verdade. Com árvores frutíferas, muita grama e outros animais. Todos soltos, porém, saudáveis. Todos novos, eu bem velhinha. Com um câncer na língua que já foi extirpada, a quimioterapia começou faz muito tempo, perco peso, a barriga ronca, mas não consigo comer mais nada, nem ração arrumadinha, com ovos cozidos e carne moída de primeira. M. e B. não puderam vir, estão ocupados se tornando gente grande. Quem cuida de mim é ela, a mulher alta, branca e riquinha, que me trouxe para este sítio, em qualquer lugar do planeta, para passar meus últimos dias e morrer ao pôr do sol em seu colo, em um dia de fevereiro.
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[1] Escritora, vinte e dois livros publicados, entre eles, Rio a quatro mãos (2021), novela policial escrita com Adriano Portela, e As filhas do adeus (2021), contos-crônicas sobre mulheres especiais em sua vida. Mestre em Teoria da Literatura (UFPE), doutora em Escrita Criativa (PUCRS) e ministrante dos Estudos em Escrita Criativa. Contatos: www.patriciatenorio.com.br; patriciatenorio@uol.com.br; www.estudosemescritacriativa.com; grupodeestudos.escritacriativa@gmail.com.