Solo de Clarineta**

 

O vento espalhava o cheiro dos jasmins

e o solo de clarineta invadia  ruas e casas ao cair da tarde.

Os jasmins vinham nos cabelos de Marieta,

Enrodilhados às tranças do seu cocó.

A prima saía, calçada afora,

dando boas-tardes aos conhecidos.

Muito amável.

Seus belos olhos azuis não disfarçavam

a  vaidade, pelo êxito de sua atividade social,

que se refletia nos caminhos da liderança política do marido,

eleito prefeito várias vezes.

Vestia-se com tons claros (o branco preferido),

suas anáguas com rendas de bilros eram passadas a ferro

por Dasdores, famosa engomadeira.

Ia à missa na matriz às dez horas aos domingos,

praticar as suas devoções religiosas com ardor.

 

Dentro e fora da igreja Marieta, presidente do Apostolado da Oração,

mandava e desmandava,  nas quermesses, nos leilões de prendas,

no  Pastoril,  atraente passatempo,          

símbolo  político do  partidarismo  local.

 

Os mais ferrenhos antagonistas da politicagem regional

participavam do folguedo e esqueciam as hostilidades mútuas.

Davam trégua aos interesses pessoais. Até relevavam

a essência do drama popular, tão brandos ficavam ao pé do tablado,

reverenciando as belas meninas bom-jardinenses, com Didi à frente,

quase sempre roubando a cena como a mestra do cordão encarnado.

 

Com Marieta, a politicagem de conflitos mesquinhos não fora além

das disputadíssimas jornadas e louvações das duas alas do pastoril.

No seu chalé, de lambrequins enroscados de bambus

e jasmins-de-madagascar,

que me parecera sempre festivo (iluminado em ocasiões especiais),

recebia os amigos juntamente com Naninha, sua enteada.

As duas tinham uma maneira muito afetuosa de acolhimento.

Na sala de visitas com vitrais coloridos nas janelas,

ouvia-se o gosto musical dos mais velhos

(os meninos adoravam rodar a manivela da vitrola)

com os discos das operetas de Franz Lehár:

“Mery Widow” e “Mazurka Azul”

Coleção de seu Vino (Etelvino Maior, avô do escritor Mário Souto Maior).

O violão também tinha vez.

Nas varandas laterais, os rapazes improvisavam serestas e batucadas.

O excelente músico Dinamérico Sedícias sempre presente.

 

O presente***

 

Numa das costumeiras viagens ao Recife, meu pai fizera-me uma bela surpresa. Trouxera-me de presente um piano alemão Essenfelder, numa bela caixa de mogno. Foi uma festa, a partir do momento da chegada do trem, lá da Estação da Great Western, com curiosos acercando-se ao desembarque.

João do Bonde, auxiliando os carregadores, comandava o traslado para a minha casa, a mesma onde morou o meu tio-bisavô, coronel Joaquim Gonçalves, na rua que ainda tem o seu nome. Já imaginava onde colocar o meu piano na sala. As minhas primas vieram correndo festejá-lo. Posto no devido lugar, Heloísa experimentando-o, tocou o belo tango Jealousie; Carmem tocou Noche de Ronda. Eu estava tão excitada, que mal tirara dele uns ligeiros acordes.

Juntara gente na calçada. O “sereno” formara-se à medida que as pessoas passavam e iam se deixando ficar. Do Recife, periodicamente, vinha o alemão seu Jorge, conhecido afinador de instrumentos do Conservatório de Música. Durante algum tempo, ocupara-se dessa tarefa.

Com o piano em casa, passei a dedicar várias horas do dia aos meus exercícios. Ganhei da minha amiga Iara Bezerra de Melo, exímia pianista do Rio Grande do Norte, um precioso álbum, Compositions by Classical Composers, que guardo até hoje.

 Heloísa me diz que alguns rapazes passam a tarde na varanda da Prefeitura, ouvindo-me tocar. Fiquei feliz e encabulada. O som do meu piano ecoava muito além do Pátio da Matriz.

 

Texto inédito na Imprensa, escrito em 1986, para um possível livro de memórias.

 

A luz de Cícero Dias****

 

            Picasso, certa vez, escreveu que a presença de Cícero Dias era necessária em Paris. Diz Mauro Mota, em crônica no Diário de Pernambuco, edição de 6 de abril de 1980: A presença de Cícero Dias é necessária em Paris, não foi por causa do período abstrato e sim através da pessoalidade. Ao invés de pedir alguma coisa, Cícero Dias dá muito de si mesmo a Paris cheia de abstracionistas universais.

            A primeira vez que, com Cícero Dias estive, em 1948, era noiva de Mauro Mota, amigo do pintor. Como, nessa época, noivos não saíam sozinhos, acompanhou-nos a prima Heloísa, que iria, logo depois, estudar em Paris. Cícero Dias realizava uma exposição dos seus quadros na Faculdade de Direito do Recife, coincidindo com a chegada de Assis Chateaubriand – comandante dos Diários Associados – grande divulgador do Brasil no exterior, trazendo de Paris um grupo de amigos, entre eles, o nosso ministro do Exterior, João Neves da Fontoura, e a duquesa de La Rochefoucauld – a ilustre dama veria o que de notável o Recife e a Paraíba, terra de Chateaubriand, exibiriam aos visitantes – o diretor do Diário de Pernambuco, Aníbal Fernandes, um apaixonado por Paris, entre os convidados, falando um francês fluente, conversava com a duquesa. Nessa época, Mauro Mota secretariava o Diário de Pernambuco. Ao evento compareceram jornalistas: Laurênio Lima, Paulo do Couto Malta, Antônio Camelo, Altamiro Cunha, Esmaragdo e Murilo Marroquim, Austro-Costa, Mário Melo, Sílvio Rabelo, Olívio Montenegro; o colecionador de artes sacras Abelardo Rodrigues, os pintores Lula Cardoso Ayres, Balthazar da Câmara, Mário Nunes, Vicente do Rego Monteiro, e professores da Faculdade – Luiz Delgado, Murilo Guimarães, Odilon Nestor, este a falar bem o francês. Lembro-me dos cartões timbrados de Odilon – Stern Graveur47, Passage-Panoramas, Paris. Dele guardo uma mensagem de agrado pela leitura do meu livro, Pátio da Matriz. Nessa noite, fui apresentada ao pintor Cícero Dias e a Gilberto Freyre, seu amigo desde a publicação do livro  Casa-Grande & Senzala. Na 1ª edição, 1933, o livro traz vinhetas e ilustrações de  Cícero.

            Os quadros de temas abstracionistas e de fantasias oníricas provocaram polêmicas no meio artístico e cultural do Recife e do País. Alguns achavam a arte de Cícero irônica e deformadora. Por essa época, o poeta mineiro Murilo Mendes dizia ser Cícero um primitivo. Mário Hélio Gomes de Lima escreveu: Cícero Dias foi o mais anti-acadêmico dos pintores brasileiros.

            Dia seguinte à exposição, Assis Chateaubriand agendara um concorridíssimo jantar no Restaurante Leite. Antes, na Pracinha do Diário, homenageando ilustre dama francesa e comitiva, houve exibição de maracatus, frevo e repentistas. Chateaubriand, admirador do poeta Ascenço Ferreira, convidou-o para, com seu vozeirão, declamar as suas poesias.

            No meu “diário”, de 21 de agosto de 1948, registrei a exposição de Cícero Dias e o festival das fantasias tropicalíssimas do diretor dos Associados, homenageando a parisiense Emée de la Rochefoucauld.

            Depois de casada com Mauro Mota, jornalista dos Diários Associados, sucederam-se outros festivais, tão ou mais notáveis, em outros estados brasileiros e em Paris. Hoje, no meu apartamento, convivo com quadros de Cícero Dias. Um deles, datado de 1948, com abstrações geométricas, à semelhança das linhas de Picasso, seu compadre, padrinho de Sílvia, única filha de Raymonde e Cícero. Sempre tivemos os Dias próximos de nós. Havia em torno do casal e das exposições de Cícero festivas demonstrações de bem-querer. Almoços e jantares eram agendados em Jundiá e no Recife, em casa dos seus numerosos amigos. Certa vez, jantando em minha casa, Raymonde e Cícero levaram um quadro meu para Paris. Ele dizia que gostava da minha pintura regionalista.

            Cícero Dias, em 1978, ilustrou, com onze desenhos, a edição comemorativa dos 25 anos do livro Elegias, de Mauro Mota, lançado na  Pool Editorial, do escritor Marco Aurélio de Alcântara. Um belo livro. Os desenhos assinados por Cícero foram distribuídos entre nossos filhos.

            Em Paris, por duas vezes, estive no ap. 123 – Rue Longchamp, no elegante 16º Distrito. A casa convidativa, o Engenho Jundiá, presente na hospitalidade, a sala com as paredes recobertas de painéis, o piso de mosaicos florentinos, o ateliê comprimido: cavaletes, mesas, incontáveis tubos de tinta e pincéis, o avental do pintor e o cafezinho brasileiro.

            Diz o poema de João Cabral: Na ilha antiga de São Luiz, / que abre em dois o Sena em Paris, / (…) Cícero, ciceroneando / todo amigo pernambucano. Lá estávamos eu e Magdalena Freyre, para um passeio a convite de Cícero, pelos jardins da Place des Vosges, a preferida de Victor Hugo. O grande escritor dizia que respirar Paris conserva a alma. Pela Rive Gauche, não resisti, entrei numa loja de pianos – uma velha paixão. Contornando o Sena, lembrei-me do poema de Ribeiro Couto, O Estrangeiro, que sei de cor. Em St-Germain-des-Près, no Deux Magots, a ver o mundo passar, gente de todos os quadrantes da terra, tomamos um cafezinho e nos despedimos do casal que fez de Paris a sua esfera ambiental. Cícero, da pintura por vocação, fez o retrato da sua vida. De táxi, voltamos ao nosso Hotel Brebant, no Boulevard Poissonière.

            A Fundação Armando Álvares Penteado, São Paulo, em 2005, editou o álbum de 300 páginas, Cícero Dias – Décadas de 20 e 30. Nele, à página 52, está o belo Soneto de Jundiá e Cícero Dias, que lhe dedicou Mauro Mota.

            Na última viagem que o pintor fez ao Recife, ficou difícil encontrar os seus amigos. Muitos deles se foram. Na comemoração do centenário do artista, 1907-2007, lembrei-me do que escreveu o poeta francês Paul Éluard: Em Paris, Cícero acende a luz do Brasil. Diz Mauro Mota que ele acendeu mesmo: lá e cá.

 

Diário de Pernambuco, 7/3/2007

           

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 (Nota Biográfica enviada e textos revisados pela autora).

*Marly de Arruda Ramos Mota nasceu no Engenho São Francisco, em Ipojuca (PE), em 1926, passou sua infância e parte da adolescência no município de Bom Jardim, no mesmo estado. Nos anos 40, transferiu-se, com a família, para o Recife, onde cursou Magistério da Escola Normal Oficial de Pernambuco. No final dessa década, conheceu o poeta, jornalista e professor Mauro Mota, com quem se casou e teve quatro filhos: Maurício, Eduardo, Sérgio e Teresa Alexandrina. Sensível às Artes e à Literatura, produziu suas primeiras telas, em estilo naïf, a partir de 1965, mesmo ano em que estreou na atividade literária, cm o livro de crônicas, Pátio da Matriz, ilustrado pelo artista plástico Lula Cardoso Ayres, publicado pela CEPE, Imprensa Oficial de Pernambuco. A partir de então, desenvolveu carreira paralela de pintora e escritora, imprimindo à sua obra um caráter lírico, sentimental e memorialístico, que remete à paisagem e aos costumes interioranos que marcaram a sua formação. Sua primeira exposição individual data de 1967, quando mostrou uma série de óleos sobre tela no Salão do Hotel São Domingos, no Recife. Desse ano até 2003, participou de diversas coletivas, em Pernambuco, no Rio de Janeiro e no Maranhão, realizando, no mesmo período, mais de vinte individuais, nesses mesmos Estados, e, ainda, em cidades de Portugal. Das mostras assinadas pela artista, destacam-se os quadros inspirados na obra de Eça de Queiroz, de Mauro Mota e de Gilberto Freyre, intitulados, respectivamente, Cenas Ecianas, Cenas Mauromotianas e Cenas Freyrianas. Colaboradora na Imprensa pernambucana, desde 1970, publicou várias crônicas no Jornal do Comércio, na Revista do Clube Internacional e no Diário de Pernambuco (de cujo quadro de articulistas faz parte, hoje, escrevendo, quinzenalmente). Como artista plástica, ilustrou diversos livros, dentre eles, O Criador de Passarinhos, de Mauro Mota, e O Recife, Sim! Recife, Não!, de Gilberto Freyre, e Gilberto e Eça na Fundação Joaquim Nabuco, coletânea publicada pela Editora Massangana, da Fundaj.  Telas suas integram dentre outros acervos: O da Galeria Metropolitana do Recife, da Academia Pernambucana de Letras, do Palácio do Governo de Pernambuco, dos Museus de Ille de France e de Laval (França), da Galeria-Biblioteca Rocha Peixoto, da Póvoa de Varzim (Portugal), da Academia Brasileira de Letras – Solar da Baronesa (Campos, RJ), do Museu do Novo México (Santa Fé, Estados Unidos), da Prefeitura Municipal de Bom Jardim, da Reitoria da Universidade Federal da Paraíba (João Pessoa). Em 1997, Marly Mota lançou seu segundo livro de crônicas, Janela, Editora Bagaço. No ano seguinte, foi eleita para a Cadeira nº 12, da Academia de Artes e Letras de Pernambuco. Em novembro de 2008, os integrantes da Academia Pernambucana de Letras elegeram-na para a Cadeira nº 29, em substituição à poetisa Maria do Carmo Barreto Campello de Mello. Em maio de 2013, foi eleita, Sócia Correspondente da Academia Luso-Brasileira de Letras, do Rio de Janeiro. Neste mesmo ano, a UBE, União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, indicou o seu nome, – “Prêmio Marly Mota” – Obra completa, concedido a talentosa escritora pernambucana, Patricia Tenório. Contato: marlym@hotlink.com.br

** Extraído de Janela, Marly Mota. Recife: Bagaço, 1997.

*** Extraído de Além do jardim, Marly Mota. Recife: CEPE, 2009.

**** Extraído de O mundo e o carrossel: crônicas, Marly Mota. Recife: CEPE, 2009.