Como surgiu a noite
A Noite dormia no fundo do rio.
Cobra-Grande guardava as profundezas,
e ainda não havia animais,
nem pássaros, nem peixes.
A noite tinha pálpebras de breu
e ainda vivia encolhida
dentro de um caroço de tucumã.
Aí, os escravos do marido da Cobra-Grande,
partiram para buscá-la.
Pelo caminho de volta,
o caroço deixava escapar abafados ruídos
de grilos e sapinhos.
É que a noite se embalava, sozinha,
nas fibras de tucum.
Assustados com isso,
os escravos soltaram a prisioneira.
E o dia foi logo surpreendido com as coisas
transformadas em animais,
peixes e aves.
De um paneiro, gerou-se a onça;
os cipós viraram cobras;
um tronco de árvore no meio do rio
tomou a forma da anta;
uma pedra começou a andar,
era o jabuti;
os frutos silvestres tornavam-se peixes,
os sons da floresta mostravam o cujubim,
o acauã, o uirapuru.
Feito isso, porém,
a noite e o dia se abraçaram
no corpo da filha da Cobra-Grande.
Os escravos, como castigo,
passaram a andar sobre os galhos das árvores.
Eles tinham a boca suja de breu,
e deviam, por muito tempo,
se limparem dessa nódoa.
As raízes do texto (II)
Pequeninos flagrantes da tarde,
aliados à música e ao vento
que ameniza o verão,
me fazem perceber nitidamente
como tudo o que veio para ficar
já estava na paisagem.
E nem precisa fazer barulho.
A origem do mundo
O mundo não foi criado: apareceu.
Testemunha disso é a Cachoeira do Jacaré, onde uma lua guardara os Pakarós corridos pela gente de uma idade perdida.
Através da fumaça do iraiti, eles viam o coração das mulheres alar-se para junto dos homens.
O tempo, contam, ainda não punha obstáculos ao corpo, por mais lerdo que fosse. Bastava uma puçanga, e o amanhã estaria alcançado.
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* Textos extraídos de Quando as noites voam, de Jorge Tufic, Valer Editora, Manaus, 2012.
** Jorge Tufic nasceu em Sena Madureira, Acre, a 13 de agosto de 1930. Viveu em Manaus durante 46 anos, saindo para morar em Fortaleza, em 10 de dezembro de 1991. É autor da letra do Hino do Amazonas, entre vários livros de poesia, ficção e ensaio, perfazendo os 50 títulos publicados. Pertence a várias entidades, entre as quais a Academia Amazonense de Letras, Academia Acreana de Letras e a Academia de Letras e Artes do Nordeste, sendo, além disso, detentor de inúmeros prêmios literários, com destaque ao “Curso de Arte Poética”, prêmio nacional da Academia Mineira de Letras para o ano de 2003. É Comendador da Ordem do Mérito Cultural do Estado do Amazonas, Cidadão Honorário de Fortaleza e colaborador do portal Cronópios da Internet. Foi objeto de uma primorosa reportagem do jornalista libanês Al Naher, já divulgado e traduzido para 80 idiomas. Contato: jorgetufic@hotmail.com