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Faz poesia o
chinelo deixado nas
ruínas do
alpendre.
Faz poesia o
tanque da
casa entregue aos
ermos.
Faz poesia o
balanço que
embala a
saudade.
Faz poesia o
graveto
no meio da
coivara.
Faz poesia o
anjo de
costas para a
galáxia.
Faz poesia o
menino que
inventa os sons
da palavra.
Faz poesia o
copo no
sono das
moscas.
Eu não faço
poesia.
A vigília[2]
A noite se crava em meus ossos.
Ela tem muito de mim:
guarda os milênios de chuva
destaca as fogueiras do mito
faz gotejar os pajés da Amazônia
sobre lagos & rios.
Essa noite não dorme
enquanto a prolongo.
Suicídio na aclimação[3]
Que nome dar à solidez dos objetos
que te viram partir,
o desespero branco voltado para onde tarda
o socorro a notícia o diminuto eco,
talvez,
de tua morte sequer imaginada?
Resta agora a solidão geométrica
do encarceramento vesperal,
com teus punhos ensangüentados,
tua boca terrível,
gasta e seca.
Pretúmulos edificados na linha dos postes,
sacadas vazias, vento morno,
cortinas sem brilho.
Solitários vultos,
lá embaixo,
contemplam o domingo driblado
pelos velozes motoboys
entregadores de pizza.
I[4]
Contam que foi assim.
As águas baixaram tanto
que os peixes subiram para a terra,
tomaram forma de gente.
Uma Cobra do tamanho do arco-íris
espalhou essa gente pelas margens do rio.
Antes da pupunha e do arumã,
antes do Dia e da Noite…
Das seis coisas invisíveis, como ganchos,
cuias, bancos, maniva, ipadu e cigarros,
destacou-se a mulher,
criada por si mesma.
Ela aparece no desenho dos índios
sorrindo para os trovões…
Enfeites e objetos de uso,
também estavam prontos, ali.
E as casas eram de pedra tão fina
que luziam por dentro…
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* Jorge Tufic nasceu em Sena Madureira – Acre (1930). É filho de imigrantes libaneses. Seu nome completo: Jorge Tufic Alauzo. Estreou-se na poesia com o livro ¨Varanda de Pássaros¨ (1956), já em Manaus, para onde transplantou-se com a família. Em 1954 ingressou no Clube da Madrugada, um movimento cultural baseado num manifesto sucinto, porém radicalmente inovador das artes e letras amazônicas. Em 1980 conquistou o primeiro lugar no Concurso Nacional para escolha da letra do Hino do Amazonas. É detentor de vários prêmios nas categorias de ensaio, crônica, conto e poesia. Tem mais de 50 títulos publicados, a maioria deles na área do fazer poético. Reside em Fortaleza desde 1992. Contato: jorgetufic@hotmail.com
(1) Extraído de Guardanapos pintados com vinho, Jorge Tufic, Realce Editora e Indústria Gráfica, 2008, pp. 58-59.
(2) Extraído de Poema-Coral das Abelhas, Jorge Tufic, Expressão Gráfica e Editora, 2010, p. 21.
(3) Extraído de A insônia dos grilos, Jorge Tufic, Expressão Gráfica e Editora, 2011, p. 22.
(4) Extraído de Quando as noites voavam, poema Boléka – A onça invisível do universo (Mitologia Dessana – Tukano), Jorge Tufic, Valer Editora, 2012, p. 27.