A Fala do Beco**
nos signos em rotação
fui de áries a peixe
nuvem e gavião
livrei-me das neuroses
com a overdose
das metempsicoses
tomei sol com Menipo
soldado em Alexandria
vaso e arquétipo
depois fui crepúsculo
na bela anatomia
de sólido músculo
estranha coorte:
só eu sei o que vem
depois da morte
verdade nua:
fui antes rua
na Catalunha
realidade-triste:
em bico de pássaro
cumpri-me alpiste
quando fui água
segui o roteiro
de todas as mágoas
quando fui fogo
descobri o ideal
do bem e do mal
quando fui ar
descortinei a alcova
onde o vento faz a curva
mudo no mundo
girando na roda-gigante
da alma do todo
reencarnando
ora encarnando
ora verde-musgo
eis-me agora no chão:
pra entender a matéria
e o seu coração
&&
tua alma tantra
tem superlativo nó
dar-te-ei um mantra
as cinzas do pó
mas logo te advirto
nada posso aprendizar
a não ser as lições
do teu próprio avatar
ouve: o abc do viver
compreende dois capítulos
a ciência do mestre
a arte do discípulo
como podes entender
o corpo de ressurreição
se combates a matéria
e o corpo do teu irmão?
como ousas apreciar
o belo torso de Apolo
se aos olhos da realidade
és criança de colo?
às vezes não sendo se é
pra ser-se o conteúdo
mas o que se ser pretende
é ser não sendo contudo
mas há um mini-instante
na hora do ave-maria
que a ciência do ser
é a arte do não-seria
tu o dizes: sou o beco!
meu caminho é estreito
pela estreita porta
não passa a moura torta
aquele que joga pedras
no telhado do vizinho
sequer perceberá
as pétalas do caminho
quem atira pedras
e esconde a mão
jamais conhecerá
minha salvação
mas quem reza a minha cartilha
pega no pote
e segura a rodilha
esse é da família
Prestação de Contas***
Eu me declaro culpado
por ter usurpado
o segredo dos anjos
e ter comido a fruta
que os olhos pediram
e os lábios desejaram.
Eu me declaro culpado
por ter roubado a bula
da árvore do conhecimento
mas assumo as perdas e danos
por ter violado
o aéreo espaço da verdade.
Não fabriquem testemunhas.
Não culpem terceiros.
Não intercedam.
Era uma questão
de honra.
Era uma questão
de ser.
Era uma questão
de conhecer.
Tava tudo
muito blue.
Tava tudo
muito comportado.
Tava tudo
muito sagrado.
Eu me declaro culpado
de ser o co-autor
dessa façanha
que se chama Mundo.
Mas aviso aos interessados:
a vida não é cheque em branco,
a vida não é promissória vencida,
a vida não é pagamento combinado.
A vida é valor a ser resgatado.
Mas saibam que ninguém escapa
ao troco da culpa e do pecado.
Anjinhos, muito obrigado.
Mais****
não se sacrifique mais
não toque mais
o alaúde barroco
não aceite mais
o chocolate amargo
não coma mais
o pão ázimo
não seja mais
órfão de si mesmo
destrua mais
seus sonhos
consuma mais
ideais
assassine mais
a esperança
não seja mais
um morto-vivo
não leia mais
poetas desafinados
não lute mais
contra o destino
não ame mais
Dor nunca mais
Em caso de morte
chamar o fotógrafo mais famoso
Mais
nada
Auto do Retrato*****
Este corpo não é meu.
Visto-o como emprestado
a algum nobre antepassado
que dentro em mim se escondeu.
Esta alma não é a minha.
Habita apenas o eterno
inútil espaço de um terno
que com o corpo caminha.
Não é minha a cicatriz
que desenharam nos ombros
nem esses olhos de escombros.
Tampouco o queixo e o nariz.
De mim apenas o gesto
o olhar o passo a ironia
a fútil genealogia
de tudo que sobra e é resto.
D******
Meu pai caminha em mim
com suas muletas de maio
cavalgando rútilas esporas
como quem adestra um baio.
Meu pai caminha em mim
– qual Ignácio de Loyola –
Traz as pernas restauradas
Sob a cruz e a sua escolta.
Meu pai caminha em mim
igual Laio reintegrado
renegando a profecia
de ter um filho aziago.
Oração pelos rios do Maranhão*******
Senhor fazei-me generoso
como os rios do Maranhão:
banham o espírito do povo
purificam-lhe a alegria e as dores
matam a sede das crianças
fecundam o pão da esperança
Não permitais que o egoísmo
corte a circulação da misericórdia
aos afluentes e necessitados
Transformai-me em manancial
não em deserto
Que eu saiba dar e receber
Que eu lave os pés daqueles
de quem o destino sujou as mãos
E flua eternamente em mim
o dadivoso suprimento da vida
Um********
quando estou em ti
e tu estás em mim
inverte-se o princípio
do início e fim
no primeiro momento
há movimento:
eu sou tu és
no segundo momento
há desfalecimento:
não sei quem sou
acaso és?
no terceiro momento
viramos fragmentos:
o nós e o vós
habitam em nós
depois não há nada
e o espírito do só
recolhe-se ao pó
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* Luís Augusto Cassas (2 de Março de 1953, em São Luís do Maranhão) nasceu longe, como as utopias, desenvolvendo a vocação para o horizonte.
Trilha o caminho do meio, mas há risco de abocanhar o inteiro. Após ciclo de mortes e transformações, novo nascimento entre duas palavras.
Tendência à profundidade, por estar sempre em queda. Teórico do mais. Hoje, discípulo do menos.
Poeta do alto e do baixo, do externo e do de dentro; às vezes é fogo; às vezes, vento.
De índole solitária, não é membro de nenhuma academia de letras, sindicato ou entidade de classe. Mas aprecia longas caminhadas e bom papo.
Gosta de contemplar a unidade, dispersa na criação: “Embora o olho não perceba, sabe-o o coração”.
A serviço da luz, do belo e do verso. Para ele, o mundo é pura poesia. Não é à toa que o chamam de universo.
No final de 2012, a Imago Editora lançou A Poesia Sou Eu, sua Poesia Reunida, reunindo 16 livros éditos e 4/5 inéditos, em 2 volumes encadernados, com quase 1400 páginas e vasta fortuna crítica.
Contato: luisaugustocassas@terra.com.br
** Extraído de Bhagavad-Brita: (a canção do beco), Luís Augusto Cassas. Rio de Janeiro: Imago, 1999.
*** Extraído de O shopping de Deus & A alma do negócio: poemassaurus rex, Luís Augusto Cassas. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
**** Extraído de O vampiro da praia grande (poemas), Luís Augusto Cassas. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
***** Extraído de A paixão segundo Alcântara: e novos poemas, Luís Augusto Cassas. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
****** Extraído O filho pródigo: um poema de luz e sombra, Luís Augusto Cassas. Rio de Janeiro: Imago, 2008.
******* Extraído de Evangelho dos Peixes para a Ceia de Aquário, Luís Augusto Cassas. Rio de Janeiro: Imago, 2008.
******** Extraído de A mulher que matou Ana Paula Usher: (história de uma paixão): poemas, Luís Augusto Cassas. Rio de Janeiro: Imago, 2008.