26. SOBRE UM CÃO NUMA ESTRADA DO SONHO*
No que dormi, apenas uma estrada de terra pela qual desce um cão e tantas coisas a dizer:
que vejo que perco a minha mão direita,
que olho o fim do braço até uma forma que chora até um vão onde dedos antigos se mexiam e desaparecem do espaço, dos retratos, mas ainda não do desconforto.
*
E logo a estrada e o cão me caminham
e a luz que vence os eucaliptos em fila
e desinfecta os desastres de cada passo
pergunta se acredito
e assim me perco entre a letra cursiva
e o que serei sem a mão direita.
Não acredito e não tenho orgulho.
*
Porque sei que a desconfiança acerca da estrada advém do que dela narram e de um cão que pode ser perigoso.
Mas nisso que é sonho e névoa,
me cheiro de coisa repetida que tanto enjoa.
Sou eu no cão na estrada e me vejo
na curva que se deita e dorme leve
com a esperança de que darei certo amanhã mesmo sem a mão crente que fecha as cortinas.
*
A estrada de chão e o cão: sou feito dessas margens que se seguram, que esperam que eu volte, esperam que eu chegue, pela frente, já aos lados, sem nenhuma desconfiança dos campos de soja.
O gosto de terra molhada na boca
ficará vestígio depois que grãos maiores rasparem o que será garganta e a mesa do escritório calar que eu sente.
*
Mas antes estarei sozinho sobre a cama,
e o tecido que as fronteiras do olho trouxerem se costurarão hoje numa roupa feita à medida para o dia de agora.
*
Sobre a estrada sobre o cão vai chover naquela noite de sonho.
Em qual das mãos a água cairá em mim?
Em qual discussão do ouvido
latirá o que vem com o sol depois
quando os eucaliptos soltarem sob a casca o cheiro de coisa imatura?
*
Sim, cão, nos faltará uma fé qualquer perdida para aceitar que matamos desarmados, que matamos dormindo e que a minoria é matematicamente maior.
Sem fé em ti, estrada de sonho,
não haverá mãos pretas que cortaram cana, não haverá mãos virgens que seguraram nojo, nem homens que enriqueceram a partir dos bens da família rica.
*
Mas não tenho fé sequer nesta minha mão direita:
está aqui sobre a mesa e ainda não a encontro.
Será preciso ensinar a esquerda a rezar pela irmã desaparecida, a ter destreza e assinar logo e sem questionamentos o que sempre é necessário.
___________________________________
_____________________________________

___________________________________
* Poemas postados no Jornal Nova Folha, Guaíba, RS. Fotografia: Valmir Michelon. www.novafolha.com.br/altair-martins
** Altair Martins (Porto Alegre, 1975). Bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — ênfase em tradução de língua francesa —, mestre e doutor em Literatura Brasileira na mesma universidade. Ministrou a disciplina de Conto no curso superior de Formação de Escritores da UNISINOS entre 2007 e 2010. É professor da Faculdade de Letras e de Escrita Criativa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), atuando no Programa de Pós-graduação. Coordena o projeto de pesquisa O fantástico em tradução. Tem textos publicados em Portugal, na Itália, França, Argentina, no Uruguai, na Espanha, Hungria, em Luxemburgo e nos Estados Unidos. Ganhou, entre outros prêmios, o São Paulo de Literatura (2009, com o romance A parede no escuro) e o Moacyr Scliar (2012, com os contos do Enquanto água). A peça teatral Hospital-Bazar (Porto Alegre: EdiPucrs, 2019) e o romance Os donos do inverno (Porto Alegre: Não editora, 2019) são suas últimas publicações. Ministrante, em setembro de 2019, da disciplina Oficina de Poesia na primeira turma de especialização Lato Sensu em Escrita Criativa Unicap/PUCRS (2019.2). Contatos: altairt.martins@pucrs.br; www.altairmartins.com.br