35. FALAM OS HOMENS DO FUTURO
— Precisaremos vender a História antes:
lotear a praça e os ossos dos mortos
e calcinar a terra. Pavimentar a seguir os restos e reservar apartamentos de janelas amplas de onde quem possa pagar possa ver o rio e esquecer assim o busto que alguns nomes frequentavam como zinabre sobre o bronze.
Um modo de vender a História é
promovê-la a edifício iluminado.
(Nossa imobiliária oferece donos).
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— E antes será preciso enterrar a História e deixar que a erva ocupe as frestas e que as flores e os insetos frutifiquem sobre tudo que tiver relevo.
Será quando o cipreste da praça se condensar num resquício de paisagem.
Também enterraremos o casarão em frente ao monumento com o que teve de farda e sussurros de lança, com o que foi de chuva e fogo ao cair da noite.
(Nossa secretaria de educação já converte a História em Geografia, eliminando os pretéritos dos livros da escola primária).
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— Mas antes será preciso sequestrar a História fotografando o sítio onde estiveram alguns personagens que vendiam charque só para provar que ninguém hoje está vendendo charque.
Depois, vamos decorar os postes da calçada com as bandeiras do partido e inventar parentes e ideologias com que roubar os cavalos de antigamente.
(Nas eleições, já estão escolhidos nossos candidatos que sempre foram candidatos e por isso sempre foram escolhidos).
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— E enfim nos restará beber a História com gelo e dançar uma revolução sem entender seu nome nem sua derrota.
Vamos usar as línguas mais heroicas
pra desmaiar sobre a paz do instante,
rindo do tempo em que aqueles coitados
não tinham aspirina.
E quando acordarmos, uma fumaça espessa
esconderá que não temos fala nem fisionomia.
(Sob um sol inteiro, nossas farmácias acenam com promoções as mais interessantes).

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* Poemas postados no Jornal Nova Folha, Guaíba, RS. Fotografia: Valmir Michelon. www.novafolha.com.br/altair-martins
** Altair Martins (Porto Alegre, 1975). Bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — ênfase em tradução de língua francesa —, mestre e doutor em Literatura Brasileira na mesma universidade. Ministrou a disciplina de Conto no curso superior de Formação de Escritores da UNISINOS entre 2007 e 2010. É professor da Faculdade de Letras e de Escrita Criativa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), atuando no Programa de Pós-graduação. Coordena o projeto de pesquisa O fantástico em tradução. Tem textos publicados em Portugal, na Itália, França, Argentina, no Uruguai, na Espanha, Hungria, em Luxemburgo e nos Estados Unidos. Ganhou, entre outros prêmios, o São Paulo de Literatura (2009, com o romance A parede no escuro) e o Moacyr Scliar (2012, com os contos do Enquanto água). A peça teatral Hospital-Bazar (Porto Alegre: EdiPucrs, 2019) e o romance Os donos do inverno (Porto Alegre: Não editora, 2019) são suas últimas publicações. Ministrante, em setembro de 2019, da disciplina Oficina de Poesia na primeira turma de especialização Lato Sensu em Escrita Criativa Unicap/PUCRS (2019.2). Contatos: altairt.martins@pucrs.br; www.altairmartins.com.br