No mês de agosto de 2021, visitamos a escritora paulista da Casa do Sol Hilda Hilst e recebemos o jovem escritor e professor paulista/pernambucano Fernando de Mendonça.
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Primeira Aula do Módulo 8:
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Na primeira aula do módulo 8, descobrimos o conceito de crítica genética na obra de Hilda Hilst, quando a própria autora defende a sua criação; investigamos a escrita-montagem de Hilda a partir de comentários do cotidiano, extratos da própria ficção, usados como testes para avaliar a atenção do leitor; nos admiramos com a abrangência dos textos de Hilda além da poesia (pequenas ficções), onde utiliza técnicas refinadas da EC, entre elas, a incorporação do personagem na própria linguagem;
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Segunda Aula do Módulo 8:
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Na segunda aula do módulo, acompanhamos o processo de construção da Casa do Sol, espaço de incentivo à criação e de acolhimento para artistas (residências de artistas); constatamos como a figura do pai é onipresente em sua obra e como Hilda conseguiu driblar a falta de reconhecimento paterno através da construção de uma obra consistente e relevante para a literatura brasileira; e finalizamos com a indicação de filmes sobre Hilda Hilst.
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Terceira Aula do Módulo 8:
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E foi com imensa alegria que recebemos o jovem escritor paulista/pernambucano Fernando de Mendonça nesta quarta-feira 25/08/2021 na live sobre Hilda Hilst do nosso canal de YouTube. Confiram! O próximo escritor a ser estudado é Mário de Andrade e a escritora convidada é Maria do Carmo Nino. Não percam!
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https://www.youtube.com/estudosemescritacriativa
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Exercícios de desbloqueio:
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Módulo 7 – Cora Coralina:
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Bernadete Bruto
Contato: bernadete.bruto@gmail.com
A VELHA CASA DE VERANEIO
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Ao sopro do vento da praia
uma vista antiga reaparece
sob barro batido da rua
vejo coqueiros e areia branca da orla
a casa pequenina e branca
bem de frente para o mar
e na amplitude do amar
convivemos aconchegados
ali em Olinda
Na velha casa de veraneio
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A velha casa de veraneio, número 799, na cidade de Olinda vem lá da minha infância. Dos tempos em que a beira mar não era calçada. Bem em frente da casa existia um posto de salva-vidas de madeira, onde muitas vezes subíamos para ver todo nosso mundo lá do alto: a casa, a rua e o mar, nossos amigos e parentes. Na rua de chão batido, de barro molhado e pegajoso, moldávamos panelinhas amassando o barro multicolorido. Era bem no meio da rua, não havia perigo.
Meus olhos ainda enxergam a casa simples de veraneio, dos tempos que saíamos de Recife para Olinda para passar as longas férias escolares, que aconteciam de dezembro a março! A mobília e alguns de nós seguiam na boleia do caminhão na alegria de começar o veraneio assim, como numa aventura!
A casa era chapiscada de cimento, pintada de branco, com janelas e portas cinzentas de postigos deslizantes. Daqueles postigos com engrenagem de abrir as tabuinhas para deixar o vento entrar e que eram fechados quando chovia ou soprava um areal. De lá se observava o mundo praieiro sem sermos vistos. A casa era rodeada por um muro baixo de cobogó. Na entrada, uma pequena porta de madeira dava acesso às pessoas com um ferrolho que abríamos simplesmente passando o braço. O acesso das pessoas acontecia por uma passarela de cerâmica vermelha que conduzia aos degraus de entrada da casa. A sua direita um portão, também de madeira, servia para passagem do carro. No caminho duas rampas de acesso do carro para o terraço cortavam o jardim de areal. Terraço vazado com entrada menor para acesso das pessoas e a maior para o do carro, que por ele passava em direção à garagem nos fundos da casa.
Do terraço incidíamos para o interior da casa por uma porta de postigos, que à noite era fechada com um travessão, assim como todas as janelas. Todo o piso era de ladrilho. Na sala, a mesa grande e dois consoles, muitas cadeiras, e na parede o quadro com o coração de Jesus. Junto à sala, o quarto da frente da casa, a meninas se amontoavam. No quarto ao lado, os pais vigilantes observavam todo o movimento. No final da sala, um pequeno corredor dava acesso ao grande banheiro e no final, o quarto onde a tia, as duas irmãs mais velhas e o irmão caçula, ainda pequeno, dormiam. Os meninos maiores ficavam em um quarto acima da garagem, do lado de fora da casa. Não sei como cabíamos, pois mais gente sempre chegava e todos se acomodavam. O pequeno corredor também conduzia para uma cozinha com uma boa despensa e que dava acesso a um espaço cujas paredes eram todas vazadas por cobogós triangulares. O local dava impressão de ser bem maior, assim aberto, e nele havia outra grande mesa, agora redonda, que coexistia com outros apetrechos da cozinha. Era ali, onde muitas vezes a refeição se fazia ou o povo se dividia entre ela e a sala da frente, para caber tanta gente, dependendo do dia. Daquele espaço a porta dava para o quintal. E no quintal, coberto também pela areia de praia, tínhamos um poço com uma torneira e manivela para pegar água. Ele era fechado com um tampão pesado de madeira redondo e todos diziam para crianças não brincarem ali. No final do quintal, encostado ao muro e próximo da garagem, um quarto e um banheiro onde ficavam Inaldo e Nana, um casal de antigos empregados que moravam conosco, oriundos da casa dos pais de minha mãe. Havia encostado ao banheiro do quintal a pequena lavanderia, que não sei como tanta roupa cabia a cada lavagem… E o mais maravilhoso de tudo era o chuveiro de praia que ficava dentro da escada, meio escondido por uma porta. A mesma escada que dava acesso ao quarto acima da garagem. Era o primeiro local que íamos ao voltarmos da praia. No final do muro que rodeava a casa, um portão que dava para a avenida e no caminho para um terreno de matagal havia uma plantinha que, quando pegávamos nas folhas, elas se escondiam.
Os tempos de veraneio das redes no terraço, grandes esteiras grossas enroladas pela casa. O maiô era de elanca que furava o corpo, mas era da marca da misse “Catalina”. O meu era vermelho de botãozinho para atacar nas alças e peixinho costurado no lado direito da cava da coxa direita. Muitos maiôs coloridos caminhavam de mãos dadas para a praia, logo pela manhã, no veraneio. A mamãe olhando para todos lá do alto, enviando como lanchinho um ovo cozido. A brincadeira de cavar areia e deixar entrar água. Os castelos sendo derrubados e muitos sonhos construídos na beira do mar. A areia escura e grossa dentro do maiô e um irmão maior lhe levar para o fundo e jogar até entrar água no nariz para depois nos levar limpos para a mamãe.
Pela tarde meninos jogavam futebol com o pai na praia e nós lanchávamos o pão quentinho com manteiga e açúcar. Brincadeiras no jardim de areia com água e baldinho e moldes de estrela e bichinhos. De companhia um coqueiro pequenininho como nós. À noite brincadeira de esconde-esconde por entre as pedras dos diques, enquanto ouvíamos no rádio Renato e seus Blue Caps cantando: oh meu bem deixa essa boneca faça-me um favor. O som vinha do terraço repleto de rapazes e moças.
Depois, houve o tempo de retornar para aquela casa de outra forma, muito além do simples verão. Outros tempos, tempos de luta de meu pai. Embora difíceis, foram bons momentos para adolescer na beira do mar. Foi nessa casa, que, imprensados, passamos a viver quando o pai fechou a sua loja e liquidou os negócios.
A casa foi modificada para morarmos definitivamente e perdeu seu brilho de veraneio. As janelas foram trocadas pelas de esquadrias de vidro, janelas corrediças, de vidro fumê, embaçando a visão. O terraço foi fechado por portas de vidros também fumê e os móveis se amontoaram pela casa. Depois a cozinha foi reformada, ocupando o espaço aberto e criando outra sala em seu local. O banheiro foi duplicado criando uma suíte para nossos pais. Passamos a viver no espaço encurtado perante a facilidade de antes. E o relógio de carrilhão da tia avó foi parar no fim do corredor demarcando nossas horas… Mas aquela casa tornou-se um verdadeiro lar!
Ainda hoje recordo do azulejo, encrustado na parede da entrada do terraço, que estava escrito: “aqui é o nosso lar”. E foi de verdade! Ficamos mais próximos na pequena casa que a outra enorme nos espaçávamos, e o coqueiro, que já estava bem maior, nos entregou tão doces cocos! A vida na praia foi bem mais simples, mais despojada, até mais humana. O sol era nosso guia, nossa cor, nossa força, no azul do céu de todo santo dia a nossa frente.
Naqueles outros tempos na velha casa, não mais faltava água, como no veraneio, pois o poço foi fechado e duas bombas se revezavam. Inaldo e Nana não quiseram vir conosco e faleceram afastados… Mas a falta de luz, ainda de vez em quando acontecia, como nos tempos de veraneio. Eram nesses momentos, que todos nós nos reuníamos no terraço e na luz da lua cantávamos ao som do violão. Era no terraço que rezávamos no entardecer toda família reunida.
Muito tempo depois, cada um seguiu sua vida. Meus pais voltaram para o Recife. Foram morar no Espinheiro de onde tinham saído e lugar que tinham saudades e foram felizes num edifício bem melhor e neste tempo que a casa de Olinda foi vendida…
Sei que ainda hoje ela existe, mas foi tão modificada, que muitas vezes, quando por lá passo, ela passa que não percebo…. Um muro alto cobre sua face envelhecida e nem avisto aquele coqueiro que, como na velha canção, (que tantas vezes lá cantei) nem sei se de saudades já morreu.
No Recife, recordando Olinda, em 28 de julho de 2021.

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Cilene Santos
Contato: cilenecaruaru2013@gmail.com
A CASA DA INFÂNCIA
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Carrego na lembrança, a casa. Bonita, florida, perfumada. As paredes do quarto das meninas eram decoradas com traços arabescos. Encantava-me aquela obra de arte. Passava horas deitada na cama admirando o colorido do desenho. As camas eram brancas com detalhes cor-de-rosa. Havia uma mesinha de cabeceira. Branca e decorada com coraçõezinhos dourados. Quando o lampião derramava a sua luz, o brilho acendia os meus olhos. Saindo do quarto, encontrávamos um longo corredor marrom-claro, onde se mostrava uma exposição de quadros, com fotos dos antepassados. Um dos quadros chamava a minha atenção: a foto de duas meninas brincando com as suas bonecas, em um jardim. À esquerda, o paraíso: a cozinha. Lá, preparavam-se as mais saborosas guloseimas que já provei. Manjar, frutas cristalizadas, bolinhos de chuva, suspiros e pasteizinhos. Os adultos se deliciavam com incríveis bolos de milho, pés-de-moleque, bolos de nata. Acompanhado do saboroso café “morto no pau”. As visitas aconteciam aos domingos. Compadres e comadres, que vinham acompanhados dos filhos. As meninas ficavam no quarto das bonecas. Os meninos brincavam com os animais, no curral. As amigas e comadres da dona da casa elogiavam os doces, trocavam receitas. Também falavam sobre o dia-a-dia da casa, das empregadas e das exigências dos maridos. Os homens conversavam sobre a política, o custo de vida e a criadagem. Às vezes um ou outro contava uma piada. De longe, ouvia-se a risadagem. Quando a noite chegava, todos voltavam para as suas casas. A casa grande entristecia. O silêncio invadia a noite. No quarto, as irmãs demoravam a dormir. Ainda na lembrança, as brincadeiras da tarde, com as amiguinhas. Era bonita a vida.
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Dilma França
Contato: dilma_franca@hotmail.com
“Eu sou aquela mulher que fez a escalada da montanha da vida, removendo pedras e plantando flores.” (Cora Coralina) MAS EU BRINQUEI COM A VIDA
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NASCI…
Em um dia
De claro sol,
Manhã brilhando
Arrebol,
Prenúncio do bem
Ao meu redor…
CRESCI…
E jamais quero esquecer
Dos momentos de ternura,
Orações e coisas puras,
Sacrifícios
E lazer!
VIVI…
Enfrentei os desafios,
Não me deixei
No vazio,
Não tive medo do frio,
Lutei, sofri
E venci!
VIVI…
Brinquei com a vida
Serena,
De leve ela me bateu,
Mas no auge
Dos meus dias,
Sorrindo me respondeu!
SENTI…
O perfume das flores,
Renasci
Para os amores,
Entre tristezas dores
Caminhos encantadores
Eu vi!
Eu brinquei
Com a vida
E ela me respondeu:
Ensinou-me a humildade,
Mostrou-me a felicidade
E hoje, somos
Apenas nós:
A VIDA e EU!
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Elba Lins
Contato: elbalins@gmail.com
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REMINISCÊNCIAS
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Chegam e no primeiro momento vêm envoltas num véu de silêncio
mas da obscuridade do tempo começam a tomar forma,
a se desenharem em traços leves que de repente dominam minha mente –
outras imagens já fazem parte de quem sou e estão sempre disponíveis na minha memória –
retalhos perdidos ou desenhos inteiros me transportam
a tantas paragens
tantos lugares
tantas pessoas
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A casa de minha Avó, já contada em verso e prosa, é o lugar de onde brotam os primeiros registros de minha vida, de minha memória
onze tias maternas e um tio
os primeiros finais de semana levada por Vuvui,
tia-mãe,
uma presença constante na minha,
nas nossas vidas –
rodeadas de
jardins
quarto de costuras
bibelôs antigos de louça
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A Fazenda Marmeleiro, terraço imenso para nossas medidas de criança
Mãe Toinha e Pai Rodolfo sentados juntos no banco de madeira,
numa foto que capturou esta cumplicidade de sempre
para sempre
*
Sempre presentes
estavam Sá Chiquinha, Comadre Mariana, Chica Boa, Seu Heleno Preto…
preto retinto, pai de Maria Preta – mãe de Aruta e de Celina –
Celina que ouvia minhas leituras enquanto cozinhava
na nossa casa em Monteiro
e depois de muitos anos me emocionei ao encontrá-la
tinha ainda Antônio Inácio, compadre Pedro, Dú, Timirico, Zé Joia, Xôxa, compadre Clemente
seus filhos, suas filhas, esposas
campeando gado, ajudando na casa
nas nossas casas
uma parte boa da nossa infância
*
Na hora do almoço vejo meu avô na mesa grande com os trabalhadores
a toalha de quadro com nó nas pontas para o vento acalmar
as muitas travessas
muita fartura
mas só chegava nossa vez
depois que os trabalhadores almoçavam com meu avô
*
Junto havia a despensa,
lembro dos potes com a água de beber,
cobertos com pano e
da água tirada com caneco de lata – naquele tempo tudo era aproveitado –
as latas de óleo se transformavam em canecos e
as latas de querosene Jacaré depois de abertas
serviam para transportar água
outros tempos!
outra vida!
*
Lembro
a cozinha com seu fogão de lenha,
o local onde se penduravam os queijos de coalho e lá fora
a latada onde se fazia o queijo de manteiga
onde se pisava o milho e o café – num pilão imenso
e o terreiro onde as galinhas ciscavam e bicavam o milho
Do lado de fora um banheiro que nunca usávamos – não havia água encanada –
fazíamos xixi no mato
Tomávamos banho do lado do quarto de meus avós – com água de uma bacia –
ao anoitecer.
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Lembro perfeitamente do quarto dos avós,
a cama,
uma mesinha onde ficavam as cadernetas de anotações e
colado a ele um outro quarto separado por uma porta onde dormíamos –
uma vez minha prima teve febre
foi para o quarto de minha avó e na chama do candeeiro “trevaliava”
lembrando o martírio de São Sebastião transpassado por flechas –
talvez existisse esta imagem no quarto
minha avó esperava o dia amanhecer para nos levar de volta
não fazia sentido estar doente na Fazenda
a Fazenda era lugar de aventuras.
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Elenara Leitão
Contato: arqstein@gmail.com
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As árvores faziam sombra no caminho. Eram frondosas, antigas e cheias de parasitos que mais pareciam pequenas bromélias cuidadosamente plantadas para enfeitar. Pelo menos era o que dizia a cunhada carioca que, quando vinha ao sul, saía colhendo essas plantinhas, para espanto de quem a via tão preocupada com algo tão comum. Daninho até.
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Sorria, enquanto caminhava pela alameda, sentindo o sol quente que teimava em quebrar a proteção das plantas. Banquinhas de velharias e raridades se misturavam aos olhares curiosos. Pés de máquinas e móveis de rara madeira ao lado de tampinhas de garrafas, aquelas premiadas, e gibis de histórias da infância. No meio deles, um brilho. Uma bandeja de cálices de licor. Cada um de uma forma, cada qual em um colorido diferente. Ricamente lapidados em suas formas tão diversas. Eram como um portal do tempo. Viajou.
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Sessenta anos antes morava em uma cidade do campo. Seus pais eram jovens. Ela era uma criança de grandes olhos curiosos. Muito quieta, muito loira, muito pequena. Lembra quando vinham passear na capital. Os edifícios altos, os edifícios estranhos. Uma vez foram em um que parecia um grande olho, todo de madeira. Pela agitação de seus pais sabia que havia algo importante acontecendo por ali. Uma música ficou na memória, marcava tempos de lutas:
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Avante brasileiros de pé,
Unidos pela liberdade,
Marchemos todos juntos
com a bandeira
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Que prega a igualdade
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Protesta contra o tirano
Recusa a traição
Que um povo só é bem grande
Se for livre sua Nação.
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Legalidade, soube depois, era como chamavam. Para ela era algo épico, não porque compreendesse, mas assim via nos sentimentos de seus pais e pessoas grandes que a rodeavam.
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Os passeios na capital não eram só por motivos cívicos. Não! Havia as visitas à vó Lalica. Não era sua vó de verdade, essa morava em Cachoeira. Era a mãe de seu padrinho. Moravam em um edifício rosa, de sacadas redondas, lindo e imponente, na praça da catedral e do palácio do governo. As visitas eram todo um ritual na sua infância. Tinha que vestir uma roupa de domingo. Nunca entendia o motivo. Roupa bonita era para ser usada toda hora, bastava querença. Mas não. Aquele casaquinho rosa, de corte princesa, era reservado para as ocasiões especiais. Também as recomendações: comam em casa para não pedir comida na casa dos outros. Mesmo que fosse a casa da vó Lalica e do padrinho, era ainda casa dos outros, território a ser respeitado como se fosse um sacrário. Nunca aceitem repetição de nada, mesmo que ofereçam, também era outra máxima que a mãe repetia toda vez que colocávamos o pé fora de casa.
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A vó Lalica era uma mulher baixa. Tinha cara de avó. Não era gorda, pelo menos não tanto como a vó de verdade. Falava manso e andava como se desfilasse, toda delicada. Acho até que quebrava se viesse um vento mais forte. O pai sumia com o padrinho que, além de seu colega no banco, era fotógrafo, pintor e comunista. Ser comunista não devia ser algo muito aceito porque o pai dizia isso em voz baixa e sempre acompanhado de um “mas é bom sujeito”. A madrinha falava um pouco mais alto. Ria muito. Não tinham filhos. Era uma casa de adultos.
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A pequena olhava fascinada os móveis, tudo muito arrumado. Tinha um vitral com um grande pássaro na sala de jantar. Parecia tão deslocado ali, preso, sem poder alçar voo. A casa não tinha brinquedos. Mas tinha algo muito melhor.
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No meio da conversa dos adultos, a vó Lalica, envolta no seu xale rendado, a pegava pela mão, levava até a cozinha, abria a porta da geladeira toda branca, daquelas gordas e redondas. Ela sempre sabia o que ia ver, mas sempre era uma surpresa. Era como se abrisse um portal que a levava para um local mágico, cheio das mais gostosas guloseimas. A Lalica, Eulália de cartório, nascera em Pelotas, terra de doces portugueses e heranças requintadas. Quando ela abria aquela porta, tinham cálices de licor, muito coloridos, muito delicados, ricamente lapidados. Eram todos iguais, deviam fazer parte de um conjunto de enxoval ou relíquia de família. Dentro deles, qual tesouro, quantidades ínfimas de ovos moles. Mesmo para a boca pequena da menina, eram no máximo duas colheres e deu. A Lalica tirava um dos cálices e dava para as mãozinhas ávidas. Ela se sentia tão importante por poder pegar aquelas joias sozinha. Era um ritual das duas, sempre cumprido à risca em cada visita. Sempre igual e sempre diferente. Voltava para o sofá, bem quieta e comia bem devagar, na esperança que durasse mais. Talvez até que crescesse no cálice. Mas não. Ficava só na vontade. A vó Lalica até oferecia, mas o olhar da mãe deixava claro que não. E não de mãe, naquela época, era lei.
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Um dia as visitas, os doces e a vó Lalica acabaram. Não entendia. Eles mesmos foram morar naquela praça. Seu padrinho e madrinha não mais. Também nunca os visitaram. Só foi entender muitos anos depois. A Eulália, também só foi saber seu nome de cartório anos mais tarde, um dia deve ter olhado para o pássaro preso no vitral, ela mesma presa em uma enfermidade que a tolhia de tal forma que quebrou o encanto e voou na praça.
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A pequena cresceu. Mas nunca esqueceu os cálices coloridos tão cheios da magia da fada alada. Ficou a querência de ovos moles, a saudade da mulher delicada e um poema feito quando descobriu, sem querer, que tinham nascido no mesmo dia. Talvez fosse esse o elo que as unia.
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Eulália servia doces
não eram quaisquer
eram ambrosias divinas
daquelas de conto de fadas
servidos em cálices bem pequenos
Eu mesma era pequena
loira e calada
Eulália, a bem falante
era muda em seu cantar
não recordo sua voz
mas enxergo seu andar
se movia docemente
com a leveza dos pássaros
parece que tinha um ar antigo
dessas de histórias mágicas
sua casa, perto da minha
tinha tesouros que nunca esqueci
abria sua caixa de pandora
e me dava
um por vez
por mais que meus olhinhos gulosos
pedissem mais
um cálice bem pequeno
puro cristal colorido
todo talhado com arte
dentro dele
o mais divino manjar
uma quantidade ínfima
de doces de ovos
nada mais que aquilo
bastava para saciar
fomes
desejos
anseios
sonhos
Eulália sentava elegante
devia conversar com minha mãe
não lembro
só pensava em degustar
meus primeiros prazeres da gula
Eulália, só fui descobrir
seu nome de batismo
muito tempo depois
foi sempre Vó Lalica
um nome em tudo
apropriado para ela
Um dia sumiram os doces
ninguém falava alto
fui juntando os cacos e retalhos
Vó Lalica voara para sempre
do alto da sacada
seu corpo frágil foi tragado
pela vida que ela repelia
A Eulália
que só mais tarde também
soube que nasceu no mesmo dia
que eu.
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A bem falante das palavras mudas,
a bem amante dos carinhos delicados,
a mulher passarinho
agora alada
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Ilana Kaufman
Contato: ilakau7@gmail.com
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Lembranças
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Caixinha talhada de partituras musicais
Quando abre
Descobrem-se memórias de lugares, encontros, viagens…
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Um simples cartão
Dá asas à imaginação
E volta no tempo
De andar livremente sem ter medo
De esbarrar em gente