Diálogos
Patricia Tenório
Contos, 2010
80 páginas
“Se pensarmos bem, todo texto é um diálogo com um lugar, um passado, um futuro. Mas o que está por trás desse diálogo? Qual é essa busca?
Ao dialogarmos, descobrimos réstias da luz de nós mesmos, réstias de uma verdade que passaremos toda a vida escavando, entrevendo nuances, adivinhando gestos.
Neste pequeno livro, percorro várias paragens, estabelecendo diversos diálogos, na tentativa de captar o que o outro me apresenta, me estimula, me perturba.”
O domador de bolas de sabão([1])
Tu me plocs me pla, eu me plocs me plon. E ploc lá, ploc qui, não ploca plocon. No placa plo, no placa pli, plaquê, plaqui, não plaploquê.
No se plaque a plocon de plocagem de um ploc plocante, não se ploquê pla.
Placa ploc pla, plisser plum plonger plinecante.
Plic, ploc e plonc.
httpv://www.youtube.com/watch?v=QG1Y05p2ezw
Olhos fechados([2])
Não quero olhar o mundo.
Mas se fecho os olhos e o guardo em mim, vêm as lembranças, atormentam, torno a olhar o mundo como uma forma de escapar.
No escuro dos olhos fechados, existe todo um universo de fantasmas que assustam porque acredito neles, vejo através de um espectro a menina que fui um dia, chora e chora porque não me reconhece mais.
Não quero falar da verdade.
Ela habita em mim tão lúcida e dolorosa que sou capaz de contar suas vértebras, uma a uma, perder a conta e recomeçar, Sísifo subindo a montanha, empurrando a si, sabendo que nada adiantará tamanho esforço – não sairá do lugar, continuará o mesmo, apesar daquela ruga no lado esquerdo do rosto.
As nuvens não são feitas de algodão.
Não posso sair do meu corpo e acabar com o ar que me falta, frio nas mãos, a garganta seca, vertigem rodando e rodando até repousar em terreno fértil onde posso encontrar algum sentido.
O pouso efêmero.
Novo ar que me falta, frio nas mãos, a garganta seca. Peço ajuda a meu amigo, ele só pode me aguardar na próxima parada, piscar, oferecer o ombro. Então posso chorar e chorar a cachoeira dos olhos até a camisa azul cor de céu. O lenço branco estendido.
Lembro quando brincávamos juntos. Naquela porção de instante as almas não se falavam, unas, duas, eu e meu amigo. Podíamos saber o que o outro sentia pelo arfar dos pulmões, o tamborilar em cima da mesa, palavra engasgada que não saltava aos lábios e inundava o ar.
Meu amigo.
Ele ali buscando as palavras nos meus olhos e o meu sofrimento de grande tornava-se fino, transparente.
Meu doce amigo.
Vejo-o se afastando na plataforma, nem olha para trás, mas sei a dor que carrega no peito: não somos mais o espelho um do outro, não posso mais ver brilhar nele as cores das minhas virtudes ou a neblina dos meus limites.
Fiquei apenas com os sonhos, um leve aroma de terra molhada, aquele último aceno, e a sensação de um dia ter visto esta cena.
httpv://www.youtube.com/watch?v=VY7d7QXOSGY
Prisão Perpétua([3])
Não existem fatos, só interpretações.
Friedrich Nietzsche
A cor púrpura dos cabelos caíam em cachos por sobre meus ombros. Saía do coiffeur, na Île de St Louis, os livros de francês debaixo do braço ao encontro de mamãe.
– Almoçamos no Deux Magots?
No céu formavam-se nuvens espessas, não vai dar tempo de chegar, e os meus cabelos arrumados?
– Onde se pega o ônibus para a Rive Droite?
O menino me apontava a estação. Um menino negro, boina vermelha, vendia jornais antigos. Tive a impressão de ver uma foto minha nas páginas policiais.
– O ônibus, mademoisele! O ônibus para a Rive Droite!
O perdera. O menino não estava mais lá, desapareceu por entre a bruma do quai. A Notre-Dame cantava os sinos me lembrando do atraso. Desci as escadas na direção do Sena, quem sabe ainda pegue o Bateau Mouche?
– Quer uma carona?
Um barco azul. Um rapaz, pele clara, olhos cinza, dirigia as velas, o som alto saía das cabines, duas moças dançavam com outro rapaz louro.
– Para onde vão?
– Para onde você quiser.
– Preciso chegar logo à Rive Droite, no Deux Magots. Marquei com a minha mãe de almoçarmos lá, estou muito atrasada.
– Talvez demore um pouco. A chuva se aproxima com força. Você tem como avisá-la?
Enviei a mensagem de celular, mãe, vou me atrasar um pouco, peça a champagne rosé.
Clarice recebe uma mensagem. Acorda Pedro e lhe mostra.
– Você quer beber conosco? Esta é Sofia, Marguerite, Denis.
– Prazer, me chamo Virgínia. E você, como se chama?
– Como quiser me chamar.
Sofia puxou o rapaz sem nome, deu-lhe um beijo olhando em minha direção. A bebida no estômago vazio?, as nuvens balançando o barco?, os ponteiros do relógio que avançavam?, avançavam, na proa do barco azul, via a água sendo cortada em duas, queria mostrar à minha mãe para ela descrever no livro.
O celular de Clarice recebeu uma vídeo mensagem.
– Por que está aqui sozinha?
– Não estava me sentindo bem na cabine. E você não me diz seu nome.
– Se eu disser você me dá um beijo?
– Mas… E Sofia?
– Somos apenas amigos. E não se deve perder o momento. Pode ser que nunca mais nos encontremos.
– Minha mãe avisou que isso poderia acontecer.
– De estarmos aqui juntos?
– Eu poderia me apaixonar por alguém proibido.
O vento soprava sobre o meu cabelo desalinhando o que antes me fora arrumado com zelo.
– O significado das palavras têm muito menos a ver com a razão do que com a causa.
– Por que me diz isso?
– Você entenderá um dia.
Ele me tomou nos braços, levou ao quarto verde, retirando as roupas até me ver nua e indefesa. As mãos suaves deslizavam cada parte do corpo, girando em círculo os dedos sobre os seios nus, beijando os bicos, o umbigo, o sexo virgem, com a língua morna penetrou o âmago do meu ser retirando estrelas que reluziam no teto da cabine. Sofia fotografava com o meu celular. Ele beijava meus cílios molhados.
– Por que chora?
– Nunca fui tão feliz.
– Não se apegue a nada, minha pequena Virgínia. O barco está chegando à Rive Droite.
Denis, Marguerite e Sofia abriram a porta sanfonada da cabine. Procurava minhas roupas, o quarto nu, não havia lençóis ou toalhas e ele não estava mais lá.
Clarice e Pedro chegaram ao hospital. Pediram para ver com urgência a filha na UTI. As fotos continuavam chegando ao celular.
– Sua vadia! Eu só precisei fechar os olhos para você roubar meu marido!
– Eu não sabia. Ele disse que você era apenas uma amiga.
– Amigos que se beijam na boca?
– Sofia, você sabe como ele é.
– Não se meta nisso, Marguerite. Cuide do seu homem que eu cuido do meu.
A minha cabeça doía. Tentava cobrir o corpo com os cachos lisos, a cor púrpura escorrendo por entre as pernas, soluçando, soluçando.
– Venha, Virgínia. Emprestarei uma das minhas roupas.
Havia um aquário no quarto de Marguerite. Peixes dourados nadavam suavemente. Por entre eles, vi uma cama de hospital.
– Recebemos estas fotos, doutor. São de hoje.
O médico de olhos cinza, pele clara olhava o celular de Clarice.
– Mas vejam: desde o acidente de barco que o estado da paciente permanece o mesmo.
Meus olhos viram os olhos que me pertenciam. Eu estava lá, cabeça raspada, corpo nu coberto por um lençol branco, o rosto pálido não se mexendo, como eu poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo? Se há pouco eu fora desvirginada por alguém que nem sabia o nome? Se os meus cabelos cobriam os ombros e eu sentia o vestido branco de Marguerite colar na minha pele rosa? Se descia do barco azul me despedindo de todos, mas ele não estava lá? Nunca mais o veria?
Entrei na Rue Bonaparte, avistava a Eglise de Saint Germain de Près. Daqui a pouco verei minha mãe, almoçaremos um quiche Loraine com salada verde, beberemos champagne rosé nas mesinhas de fora do Deux Magots.
httpv://www.youtube.com/watch?v=EAAPVLPxN98
(1) Em Paris, no pátio do Museu Georges Pompidou, assistindo a uma apresentação d´O domador de bolas de sabão.
(2) Quando fechei os olhos.
(3) Sonho após receber uma mensagem de celular por engano.
* Textos extraídos de Diálogos, Patricia Tenório, 2010, Editora Calibán.
** Patricia Gonçalves Tenório é escritora de poemas, contos e romances desde 2004, tem 8 livros publicados e é mestranda em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco, linha de pesquisa Intersemiose, com o projeto O retrato de Dorian Gray: um romance indicial, agostiniano e prefigural. Contatos: www.patriciatenorio.com.br e patriciatenorio@uol.com.br