“A partir dos estudos de Confissões, de Santo Agostinho, procurei refletir poeticamente ou poetizar filosoficamente. Através das imagens agostinianas, fizeram-se eco partículas cintilantes de luz, reminiscências que eclodiram em forma de poesia.”
QUEDA LIVRE
Permaneço quieto
Diante do assombro
Primo
A escuta dos olhos
Abertos
Atentos
Ávidos
Desmesuro em mim
Tua sabedoria
Inquieta
Tangente
Perambulando os limites do corpo
Acariciando as paredes da alma caio
Profundo
Calmo
Quieto
O perigo me ronda
Na escuta dos olhos
Abertos
Atentos
Ávidos
O TEJO-PODEROSO
No rio Tejo
Corto caminho
A um lugar seguro
Agarro as margens
Como se fosse isca de anzol
Como se fosse peixe de pescar
Como se fosse haste de bambu
Carrego nos ombros
O mundo inteiro
Como se fosse Deus Todo-Poderoso
Como se fosse bicho que não teme
Como se fosse homem que não sofre
Volto às margens
Como se nunca tivesse nascido
Como se sempre soubesse quem sou
Como se não houvesse a morte
PALAVRA
O silêncio diz
Eu te respeito
Eu te saúdo
Por favor
Me ajude
Não
Sim
Talvez
Pode seguir caminhos tortos
Pode levar à beira da escuridão
Por mais que diga
O silêncio cala
Por mais que cale
O silêncio expande
O silêncio diz
O que deveria ser escondido
E por trás da cortina de veludo
Provar a essência
Do que é
Palavra
DELFOS
Procuro a verdade
Nas vírgulas dos livros
Nas pausas do tempo
No canto mais limpo
No som mais agudo
Na cor mais brilhante
Procuro a verdade
No peito que arde
Na lágrima que rola
No sal dos meus lábios
No beijo que cala
Procuro a verdade
Na face que mostra
Na dor que palpita
Na tua palavra
No silêncio
Do meu coração
PEGADAS
No texto que leio
No beijo selado
Na mão que me estendem
No pão repartido
No dia brilhante
No sopro do vento
Na fruta macia
Colhida no pé
Pegadas na areia
Desenhos no gesso
Desenhos na lua
Estrelas contadas
Por mais que me esquive
Estão todos
Ali
Outrora
Num fio de tempo
Chamado presente
D´AGOSTINHO
Os lábios sussurram beijos
De um beija-flor
Assustado com os próprios olhos
Nas pétalas do girassol
Girou em si
E não percebeu
O pôr do sol longínquo e reticente
Às margens de mim
Persigo a imagem
Do que fui um dia
Para beber da sabedoria
Na audácia de uma criança
Cubro-me em púrpura –
Desvendar olhos alheios
E fazê-los enxergar o que em parte sinto
Mas bato o pó das sandálias
E caminho até a eternidade
ESCARLATE
Dá-me a luz da espada
Para devastar a imensidão do teu saber
Alargar nos limites da ignorância
A tentativa de saber quem és
Saber quem sou
Saber por quê
Saber para quê
Diz-me uma palavra e calo
Permanecerei séculos a auscultá-la
Poli-la
Pensá-la
E num dia cor de cinza
Uma fagulha escarlate
Em mim se revelará
BAIRRO DAS LARANJEIRAS
Refrão:
Naquele tempo
Um atrás de você foi indo
Na solidão
Resolveu colher
Uma atrás da outra laranja
Na contramão
Pães, peixes
Índios partidos
Na multidão
Nem ouse
Não sonhe
Quebrar minha bacia
Parideira de cobras
Ratos
Pensar por si
Não é o mesmo
Que pensar
Somente em si
E você caiu
Uma vez
Atrás da outra
Nos seus pecados
Sem saber
Sem arrepender
Quando soube
Pela primeira
Pela segunda
E na terceira
O galo cantou
Anunciando a encruzilhada:
Bem aventurado o simples
Porque será perdoado
Bem aventurado o humilde
Porque em seu coração
Farei reinado
Refrão:
Naquele tempo
Um atrás de você foi indo
Na solidão
Resolveu colher
Uma atrás da outra laranja
Na contramão
ESPÍRITO SANTO
Augusta angústia
Me move
Inquieta
Se espalha
Da cabeça aos pés
Esbarra
Na incompletude do ser
Na incapacidade de amar
Na ignorância da luz
Me move
Inquieta
Se espalha
Da cabeça aos pés
Repousando armas
Suspirando aromas
De bem-me-quer
Suave
Fresta de um outro mundo
Onde o espírito se aquieta
CREPÚSCULO
Cai na terra
Seca
Plana
Insípida
Gotas de orvalho
Calmas
Lentas
Úmidas
Ao meu redor
Borboletas
Cores
Vida
Além da vida
Bem e mal
Caminhos e escolhas
Que não fiz
Não quis
Não fui
Nas veredas
Entremeei palavras
Castas
Curtas
Crentes
De um outro sol
Outra aurora
Outro ser em mim
SÃO PAULO
Quando tua luz aplaca meus sentidos
Sinto despir-me
De máscaras e vaidades
Podes ver-me por inteiro
Com falhas e virtudes
E gosto do que vejo
Vejo alguém fraco
Que se transforma com o teu poder
Que escala montanhas
De ódio
Rancor
E alcança o ápice do perdão
Tu és minha bandeira
Que empunho
E sou mais forte
Mais Tu
Menos a mim
Abandono e ultrapasso
A vida que me destes
CARA OU COROA
Nas palavras não ditas
Revelei
No grito contido
Na faca cortando
A carne
As veias
Estancando furor
Aplacando brilho nos olhos
O secar da boca
No engasgo da luz
Te permiti crescer
Trouxe à tona
Os bens preciosos
A cara
A coroa de espinhos
É minha
A glória do nome
É teu
O DOM E O FRUTO
Com
A mais bela rosa
Risco
O teu corpo nu
Beijo
Cada uma das células
Latejantes
Incongruentes
Entrego
Em taça dourada
O néctar do desejo
Antigo
Ancestral
Em que tu em mim farias
Gruta úmida e rara
Para apagar dos pecados
A solidão solícita
Do meu ser
Tens o inteiro
Cada margem
Cada escuta
E podes
Se apropriar do que digo
AVERRÓIS
Salta
A curva dos teus olhos
Na órbita oculta
Dos sonhos alheios
Cala
A pérola preciosa
Entre o ser
E a aparência
Entre a casa
E a viagem
Conto
À minha maneira
Penso
Pelo avesso
Abranjo
O outro lado
Vivo
Indiferente
Ao que as pessoas pensam
Independente
Do que me farão
Impaciente
Do que me aguarda
A FILHA PRÓDIGA
Cansaram
As palavras repetidas
O saber infundado
A experiência alheia
Procuro
A paz de um instante
Acolhida na fé
Doce
Paciente
O ninar da criança
Nos braços
De pai e mãe
Fim de recomeço
Poeira batida
Olhar no horizonte
Brisa de outono
Ao som da primavera
Aqui estou
Ele se glorifica
Na minha passagem
LA ISOLA
Daquela matéria fui feita
Daquela matéria amada
Nem por mim
Nem por ninguém
De um nada
Me encontro
E pronto
Eu me vejo só
Sobre os rochedos
Nas cachoeiras
Abrindo passagens
Entre as sereias
Visgo cantante
Cor de arco-íris
Que no céu acaba
Não me deixa
Potes
Toques de Midas
Apenas entardecer
E incerteza
Finco o pé
No âmago
No abismo
No nada
Em que me encontro
E pronto
Eu me vejo só
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* Extraídos de D’Agostinho, Patricia Tenório, Editora Calibán, Rio de Janeiro, 2010.
** Patricia Tenório é escritora desde 2004. Escreve poesias, romances, contos. Tem oito livros publicados: O major – eterno é o espírito, 2005, biografia romanceada, Menção Honrosa no Prêmios Literários Cidade do Recife (2005); As joaninhas não mentem, 2006, fábula, Melhor Romance Estrangeiro da Accademia Internazionale Il Convivio, Itália (2008); Grãos, 2007, contos, poemas e crônicas, Prêmio Dicéa Ferraz – UBE-RJ (2008); A mulher pela metade, 2009, ficção; Diálogos, contos, e D´Agostinho, poemas, 2010; Como se Ícaro falasse, ficção, Prêmio Vânia Souto Carvalho – APL-PE (2011), lançado em novembro de 2012. Acaba de receber o Prêmio Marly Mota, da União Brasileira dos Escritores – RJ, pelo conjunto de sua obra, e lançar em Paris Fără nume/Sans nom, poemas, contos e crônicas em francês e romeno, pela editora romena Ars Longa (outubro de 2013). Mantém o blog www.patriciatenorio.com.br, no qual dialoga com diversos artistas, em diversas linguagens. Atualmente (2014) se prepara para cursar o mestrado em Teoria da Literatura, linha de pesquisa Intersemiose, na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE com o projeto O retrato de Dorian Gray: um romance indicial, agostiniano e prefigural. Contato: patriciatenorio@uol.com.br.