O Pessoa era um fingidor.
Fingia tão completamente
Que chegava a fingir que era mil
Os mil que deveras sente.
(Plágio à Pessoa, Clauder Arcanjo)
De tudo faz encanto. Pelo menos, tenta, tenta e… tenta. Não é de desistir fácil.
Do nascer do sol, após fitá-lo e digeri-lo, concebe algo. Um haicai, a largada de pretensa crônica, duas estrofes com laivos de récita ou, pelo menos, um lírico aforismo. Todavia se, em tal situação, a palavra lhe falta, entra em crise profunda. Passa, então, a mastigar estrofes alheias, a recitar sonetos de priscas eras, ou a relembrar expressões de mestres da camoniana escrita. “De tudo ao meu amor serei atento…”; viniciualiza.
Se for o caso de flagrar um casal sentado num banco de praça florida, contorce-se febril, invadido pelo magma incontido da inspiração. Toma, lépido, de uma folha em branco, passando, de imediato, a garimpar achados no fundo da memória romântica. Sem falar das reminiscências provincianas que lhe turvam a criação com seu teimoso e inconfundível verniz de “Contraste”: “Quando partimos no verdor dos anos,/Da vida pela estrada florescente,/ As esperanças vão conosco à frente,/ E vão ficando atrás os desenganos…” Padre Antônio Tomás!… Esquecê-lo, quem há-de?
Não pense que o mote somente nasce de fatos, flagrantes e ocorrências. Não, ele, timorato, não conta as centenas de vezes em que foi jogado na rinha do texto com apenas o jab de um único vocábulo. Levantou-se do susto e passou a trocar sopapos com as teclas do computador. Para, após sangrento e renhido combate, vencer, afinal, a luta com denodo, suor e, benditas circunstâncias, em lágrimas. “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé.”
Isso sem citar as músicas colhidas da voz de um menestrel da noite, daquele tipo que insiste em (de)cantar o amor na pressa insana de uma grande e alucinada cidade.
Semana passada, confidenciou-me, bastou um assovio para enveredar horas e horas à procura de uma sentença sequer. Terminou, quase extenuado, por cometer o “crime de um dístico”. Assim confessou-me.
Não que o dístico seja coisa menor, entenda-o, caro leitor. No entanto, barroco como poucos, ele sempre foi amigo das construções exuberantes, eivadas de arabescos mil e de detalhes ornamentais.
Nas refeições, mesmo as mais ligeiras, tomado pelo compromisso com a pressa, cabula uma reunião de negócio, apenas para flanar, anônimo, no burburinho das ruas, tão somente para recolher novidades do povo. Piadas singulares, neologismos dos becos, solfejos, tagarelices… Tudo lhe é motivo para enfiar, na noite longa, a cara no vinho popular da prosa e da poesia.
Antes de deitar, filosofa, resistindo a Morfeu, acerca do seu invulgar mister. “Ser ou não ser escritor, eis a questão”; shakespeariza.
Contudo tal dúvida não resiste ao badalar da primeira hora. Logo, logo sacode a poeira da indecisão e mergulha nas águas lúdicas e revoltas da “vã literatura”, drummondianiza.
Para, no alvorecer seguinte, “mal rompe a manhã”, ver-se novamente invadido pelo barco da dúvida. “Valerá a pena, meu Deus?”; indaga-se.
E, antes de comungar o pão da aurora, a resposta se lhe apresenta. Branca como o leite, pura como o espírito que o conduz. Pessoanamente.
“Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.”
— Obrigado pela Mensagem, Fernando Pessoa! Não precisava se incomodar com este escritor de província.
Fernando Antônio Nogueira Pessoa
(1888-1935)
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* Texto enviado e autorizado pelo autor para ser publicado no blog de Patricia Tenório.
** Antonio Clauder Alves Arcanjo, nascido em Santana do Acaraú – CE aos 3 de março de 1963, é engenheiro, professor, contista, poeta, cronista semanal, resenhista literário e colaborador de sites, revistas e jornais de várias partes do País. A reunião de contos, intitulada Licânia, marcou a sua estreia em 2007. Entre seus trabalhos inéditos, o autor tem obras nos gêneros poesia, crônica, romance e resenhas literárias. Contato: clauderarcanjo@gmail.com.