Nos
primeiros seis módulos dos Estudos em Escrita Criativa On-line investigamos a
temática da viagem na obra de diversos ficcionistas, poetas e artistas do mundo
inteiro. A ideia surgiu em 2018 quando, nos encontros mensais das Livrarias
Cultura, em Recife e Porto Alegre, fomos guiados pela mão do fundador da
Universidade Popular de Caen, o filósofo francês Michel Onfray, e navegamos com
seu Teoria da viagem pelos deslocamentos dos seres ditos humanos desde
os tempos imemoriais.
Como
afirmamos em vários momentos de nossos Estudos, pesquisamos as técnicas de EC
diretamente nos textos ficcionais e poéticos. Mas também a partir de textos de
autores teóricos. Bebemos no infinito manancial da Teoria para fazer brotar
Poesia, da Crítica para nascer Ficção, e nos extasiamos, nos EEC 2018 sobre a
imagem, com os conceitos de fotografia de um dos maiores teóricos do assunto, o
escritor, semiólogo, filósofo francês Roland Barthes e o seu A câmara clara.
Barthes nos ensina o conceito de punctum, aquilo que nos fere quando
admiramos uma fotografia, e nos provoca poesias, contos, novelas, até romances,
com o seu poder narrativo e poético.
Outro
escritor teórico-poético que estudamos nos EEC 2018, sob a temática do fogo,
foi o filósofo e poeta francês Gaston Bachelard. Como poucos, ele soube
transitar entre esses dois mundos que se retroalimentam: a Teoria e a Poesia. A
obra de Bachelard é dividida em diurna e noturna. Em A psicanálise do fogo,
ele nos estimula ao devaneio, nos faz flanar de olhos bem abertos diante do
fogo, ziguezaguear pelas chamas da criação para tentarmos fazer surgir uma nova
fênix.
E descobrimos
o último conceito do sétimo módulo dos EEC On-line com o escritor francês André
Gide. O mise-en-abîme de Gide foi tomado emprestado da heráldica, em que
a reprodução de um escudo ad infinitum, um dentro do outro, gera a
sensação de espelhamento, que encontramos em dois espelhos um diante do outro,
ou na impressão de “não acabar jamais” de se extrair, como vimos antes, bonecas
cada vez menores naquelas bonecas russas, as mamuskas. O próprio Gide constrói,
feito espelhos infinitos, um Diário (dos Moedeiros Falsos) que
narra a construção de um romance (Os moedeiros falsos), que, por sua
vez, é feito, também… de um diário.
Finalizamos o sétimo módulo dos EEC On-line com um exercício de desbloqueio a partir dos autores elencados e a sugestão de filmes relacionados com os franceses e a Escrita Criativa.
Te encontrar
Contigo
passear
Pois terei
que estudar
Para me formar
E então contigo me casar. (…)
(Quando setembro vier
– Wanderléa)
Recife, 16 de setembro de 2020.
Ficou
espantada ao se deparar com aquele diário na estante ao procurar uma
determinada pasta. Como fora parar ali depois de tanto tempo e várias mudanças? Abre uma página aleatória e novamente aquele
assunto antigo retorna. Uma história de amor… uma menina abre um diário
retirado de um gaveteiro onde estava bem escondido. Lê: “Recife, 31 de agosto
de 1968… Querido diário…” Uma adolescente, como quem está perante o
confessionário, relata ao diário a enorme paixão platônica e tão bela como os
filmes dos anos sessenta! Ah, quando setembro vier… O Baile seria naquele
final de semana, todos iriam estar lá. A mocinha escreve que desconfia que ele
tem alguma queda por ela. Da última vez que dançaram,
confessa que ele falou do suave cheiro que emana de seus longos cabelos pretos…
E diz da expectativa daquele próximo encontro no sábado… e acrescenta, que
naquele dia que escreve, ela o viu passar na frente de casa. Estava lindo,
dirigindo o fusca verde claro, a cor igual de seus olhos. Mas a menina que lê
não viu nenhum nome e não teve tempo de ler mais nada porque as garotas todas
voltavam ao quarto. Por isso, tratou de devolver rapidamente aquele diário ao
local onde estava guardado. A menina passou dias olhando os carros que passam
naquela rua… mas o que mais havia eram carros daquele modelo e cores…ou eram brancos,
ou cremes ou verdes claro… um nome não foi dito.
Não conseguindo decifrar o enigma, exclama: “Que bichinha danada! Não confia nem
no próprio diário!” Ah, mas o sentimento foi lindamente impresso naquela letra
bonita, que a menina demorou a esquecer, embora depois perdeu o interesse perante
outros acontecimentos em um ano tumultuado e cheio de notícias complicadas.
Um dia,
muitos anos depois, a menina, agora adolescente, ficou de castigo por ler o
diário de mais uma irmã. Do castigo no quarto confessa a outra, uma mulher já
feita, que lera o seu também. “Sou muito curiosa, mas não deveria ter lido o
diário de B., nem contado na mesa, na hora do almoço, para plateia de irmãos,
do novo grande amor. Aquela escrevera com todas as letras o nome do amado e
muito mais coisas… muito embora a menina sabia que,
para aquela irmã, nem precisava de diário para saber de suas paixões. Pois quando
ela falava muito de um rapaz, várias vezes ao dia, todos já entendiam que
estava apaixonada e ela logo confirmava a suspeita. Mesmo assim, a mocinha
castigada confessa a outra irmã, que, embora não estivesse arrependida, sabia
que havia feito errado e que não faria novamente…
A irmã do primeiro diário lido, mulher já feita, bem resolvida com relação ao seu destino, ri bastante. E ainda satisfaz a curiosidade. O amado daquela época estava bem embaixo do nariz! Frequentava a casa. O baile não foi feliz para ela, mas foi para sua melhor amiga…ela depois transformou-se em madrinha de casamento e até do filho. A menina, agora adolescente, que já experimentava os amores platônicos, ficou triste sobre o final daquele amor tão puro guardado a sete chaves e se prometeu nunca mais ler nada dos outros. Que as pessoas tivessem sua privacidade e curasse as feridas longe de olhos curiosos e impertinentes como os seus, como ela própria vinha fazendo… Tudo isso a senhora recorda agora… e em cumprimento a uma promessa feita no passado (por mais que a curiosidade lhe corroa o espírito), fecha o diário e guarda-o em local seguro para devolver à verdadeira dona.
Escrever
é uma forma de libertação. Penso que todos os escritores e escritoras – me permitam falar dos dois gêneros, é preciso
deixar de entender o masculino como o universal – quando criam seus
personagens, no caso de ficção, ou escrevem ensaios baseados na realidade,
estão de alguma forma no processo de libertação interior.
Entendo
libertação não no sentido negativo do termo. Penso que todas as ideias que
temos, pensamentos, concepções de mundo, de cultura, religiosidade, etc., estão
presas até o momento que exteriorizamos para alguém. Como todo leitor que ama
livros, eu acredito que a melhor forma de exteriorizar essas coisas é por meio
da escrita.
E
vou além: a melhor forma de libertação é por meio da escrita literária e da
autobioficção. Desde que aprendi esse conceito usado pela professora Patrícia
Tenório, no curso de Escrita Criativa, fiquei encantado. Muitas vezes usei em
um velho blog que tenho, mas que publico raramente nos dias atuais, esse
recurso, mas não sabia que era.
Meus
textos eram uma mistura de ficção com realidade. Criei, várias vezes, cenários
afetivos e imagéticos que só existiam na minha mente, mesclando com
experiências reais de minha existência. Lembro de um texto escrito, logo após o
término de um namoro, que algumas pessoas leram e acharam ser um pequeno conto.
Não era. Foi gestado diante da dor afetiva e após uma madrugada insone.
Conheci alguns textos de Clarice Lispector, também, no curso de Escrita Criativa. Aliás, durante um tempo eu tive uma certa aversão à escrita de Clarice. Ainda bem que mudei. Percebi, leitor amadurecido e aspirante a escritor, como a autobioficção estava presente nos textos clariceanos.
Todo mundo é um autor em potencial. Muita gente não percebe isso. Acha que escrever é coisa de outro mundo, para iluminados, para gente que já nasceu com talento. Não é. Tenho aprendido que escrever exige técnica, persistência, uma dose de talento também, claro, mas sobretudo muita leitura. Essas coisas são possíveis para as pessoas. Basta reservar tempo. Evidentemente, falo a partir do lugar de um professor que não trabalha como um operário. Certamente, para os trabalhadores e trabalhadoras das profissões que exigem um esforço físico enorme, escrever é bem mais difícil.
Voltando à autobioficcção. Cada ser humano tem uma história única, forjada em dores, prazeres, sorrisos, lágrimas, conquistas e derrotas. Histórias atravessadas de vivências religiosas, políticas, familiares e culturais que, se contadas, são boas para se ouvir e, quando colocadas no texto, para ler.
A matéria-prima do escritor e da escritora é a experiência humana. E qual experiência mais interessante do que a própria? Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, canta Caetano Veloso. Essas dores e delícias, portanto, se bem usadas podem se tornar uma boa autobioficcção e uma ótima maneira de se libertar.
Da sua fala
sobre o método de Michel Onfray e as viagens, veio-me à mente a ideia de
escrever alguns contos utilizando os locais para onde viajei, principalmente no
exterior. Nesses contos pode ser usada a técnica “mise-en-abîme” e o autor, personagem
do próprio conto.
Igualmente, pode-se contar ficção e inventar histórias dos
mais diversos âmbitos, ou seja, o foco pode ser romântico, violência,
intimista. Estas técnicas funcionam como um desafio para o autor exercitar a criatividade
a partir da imaginação e também da memória, do que lembra dos locais visitados.
Particularmente, digo que a ideia de aproveitar a memória dos
locais de viagens para escrever histórias é maravilhoso, porque abre um leque
de opções para o autor criar em cima. A técnica do “mise-en-abîme” requer maestria
por parte do contista, embora não seja impossível exercê-la. E o difícil é
sempre um desafio, um convite a superar barreiras e ir além, mergulhar mais
fundo, dar um pouco mais de si.
Grato, teacher Patricia, pelos vídeos em que nos mostra
as técnicas de alguns autores através de seu olhar, seu recorte. Saudações
poéticas, democráticas e literárias.
Setembro, 2006. A primeira aula do Atelier d’Ecriture da Sorbonne. Eu, aprendiz da língua francesa, havia me aventurado a viver uma oficina literária em Paris, França, especialmente na Université Paris IV, com Laurenne Gérvasi. Um grande sonho.
Era o ápice do que eu havia construído até então, nos “longos seriam os caminhos, perigosos seriam os caminhos, tortuosos seriam os caminhos”[1] da literatura. Após o fechamento da Livraria Domenico, que vimos no capítulo anterior, me iniciei, em 2004, na Oficina Literária Raimundo Carreiro, na Livraria Nobel, em Recife; em maio de 2006, naveguei (e gostei, veremos nos próximos capítulos) na Oficina Literária Assis Brasil, ancorada na PUCRS, em Porto Alegre; e, em setembro do mesmo ano, aterrizei por quase cinco meses na Paris de Charles Baudelaire, Eugène Delacroix, Honoré de Balzac, Gustave Flaubert. E Isabelle Macor-Filarska.
Porque foi Isabelle, com suas aulas de reforço além da Aliança Francesa, que me ajudou imensamente a descortinar a língua estrangeira e escrever como se fosse uma nativa, eu, Patricia, da pátria Brasil, mas em trânsito pela Cidade Luz. A princípio, eu escrevia em francês, mas pensando em português. Isabelle me fez sair da língua materna e mergulhar mais profundamente na criação poética – devo a ela o quebrar de barreiras com a Poesia, eu que escrevia mais Ficção. Apreendi que a Escrita é universal, e, no momento em que tomamos papel e lápis ou caneta, teclado e tela de computador, somos irmãos e irmãs na Escritura, nada mais importa, se escrevemos em português, francês, qualquer língua do planeta, até chegarmos à Librairie Portugal, no 146, Rue du Chevaleret, e lançarmos As joaninhas não mentem, no dia 30 dos mesmos mês e ano, alargando as fronteiras da Escrita Criativa em mim.
[1] Frase de As joaninhas não mentem, publicado, em 2006, pela extinta Editora Calibán, do Rio de Janeiro, em 2019, pela Raio de Sol, no 7 por 11, da Coleção Cinco Livros, e vencedor do Prêmio de Melhor Romance Estrangeiro da Accademia Internazionale Il Convivio (2008), na Itália.
* Cilene Santos, escritora, poeta, cordelista. Professora graduada em Letras, com especialização em Língua Portuguesa. Membro da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel, ocupando a cadeira nº 08, e tem como patrono Dimas Batista. Publicou Branca de Neve e os Sete Anões em Versos e A vida de Joel Pontes, em cordel. Participou dos Estudos em Escrita Criativa 2018 de Recife. Contato: cilenecaruaru2013@gmail.com