14/07/2018 09h30
No capítulo “Querida tela… diário e computador” de O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet, o ensaísta e sociólogo francês Philippe Lejeune afirma que a tela do computador permite o distanciamento necessário para uma escrita terapêutica, funcionando como uma quarta parede do teatro.
“A convergência dos cinco depoimentos que vamos ler me impressionou. Todos atribuem ao computador o mérito de ser uma espécie de escuta terapêutica que decanta o que se quer dizer, que permite, graças à neutralidade da tipografia, ser objetivo, fugir de si mesmo, se distanciar. Outros fatores intervêm, como veremos: a posição face a face, a possibilidade de corrigir e, especialmente, a fantasia de ter um leitor desconhecido. O distanciamento benéfico permite que pessoas que sofrem, desgostosas com sua escrita ou bloqueadas no silêncio, encontrem um caminho em direção a si. Há, certamente, um lado dramático nas experiências contadas, mas pode-se concluir que, minimamente, para um certo número de pessoas, o computador permite realizar melhor do que o caderno as funções do diário: a expressão e a deliberação.”[1]
Tentaremos neste (o mais) breve (possível) ensaio, analisar uma viagem realizada pela autora do texto, assim, na primeira pessoa do plural, para ser possível a objetividade que Lejeune propõe, e o desbloqueio quando se aparenta não haver mais nada a ser escrito.
Comecemos pelo motivo da viagem. A proposta seria visitar as cidades de Praga e Budapeste com os filhos da autora, que doravante chamaremos de P.. Na verdade, Praga seria uma revisita, pois P. esteve, há pouco mais de quatro anos, quando em viagem para a Romênia e a República Tcheca.
“São onze horas da manhã. Estou no Café Mozart, primeiro andar da Staroměstské Náměstí 22, em Praga, lugar onde Franz (Frantisěk) Kafka (1883-1924) habitou durante algum tempo. É o décimo dia da viagem em que percorri a Romênia, e, em seguida, conheci a capital tcheca, Praha.”[2]
O filósofo francês Michel Onfray já dizia em Teoria da viagem que o corpo, aberto à nova experiência, retém bem mais estímulos do que de costume. É então que os seis sentidos – sim, o principal sentido é a intuição – da escritora se ampliam e inauguram a viagem literária.
“A viagem, de fato, é uma ocasião para ampliar os cinco sentidos: sentir e ouvir mais vivamente, olhar e ver com mais intensidade, degustar ou tocar com mais atenção – o corpo abalado, tenso e disposto a novas experiências, registra mais dados que de costume. O viajante percebe-se menos preso aos detalhes do cotidiano do que submetido à prova fenomenológica: imerso no real, ele se conhece através do jogo da intencionalidade e da consciência, experimenta ser forçado a emergir como acontecimento e do nada onde são encontrados os resíduos da decisão. Viajar é uma intimação a funcionar sensualmente por inteiro.”[3]

P. está lendo Carta ao pai, de Franz Kafka. Ela está no avião de Recife a Lisboa. Ela não consegue dormir.
“Pego a tosse
Na mão
E me aproximo
De Kafka
Na tentativa
De com ele me parecer
Em angústia
Para não perecer
No mar profundo
Das palavras
Ele me dá a mão
Do outro lado
Da Carta[4]
Do outro lado
Da grade
De artista da fome[5]
Que se impôs
Na busca
De uma cura
Da tosse
E comigo se parecer
E comigo não perecer
No mar profundo
Das palavras”
(“Chegando a Praga”, 30/06/2018, 16h45)
O corpo aberto à nova experiência parece se misturar com o corpo de Kafka, com as letras de Kafka que aparentam guiar aquela viagem, aparentam levá-los, P. e dois de seus três filhos, até a porta do Museu de Kafka na Hergetova Cihelná, Cihelná 2b, Malá Strana.

“Não me imponha
A culpa
Pois a culpa
Está na raiz
Do medo
Que nasce
Da falta
De amor
E isso
Eu te dei
Demais,
Meu filho
Chama-me
De monstro
Diante
Da cidade
Diante
Dos cidadãos
De respeito
E admiração
Como se eu
Não fosse um
Kafka
Do mesmo
Barro que
Te moldou
E que um
Dia se reconhecerá
Fraco
Mas que nunca
Perguntou
Se não era isso
O que realmente
Queria
E não era de mim
Que fugia
Quando se olhava
No espelho”
(“Carta ao filho”, 01/07/2018, 22h39)
E se Hermann Kafka houvesse recebido a fatídica Carta? E se, a recebendo, pudesse responder? O “se” da ficção, amalgamado com os sentimentos da autora, reatualiza o mito e inscreve uma possibilidade – a possibilidade de um(a) pai/mãe expor seus motivos.





Um outro dia. Uma nova história. Poder fazer tudo diferente, ainda que numa cidade que se visitou há quatro anos. O rio Vlatva não é o mesmo, e é o mesmo sob a ponte de Carlos IV. O verão queimando a pele, inebriando os olhos, que busca sombra e silêncio sob as paredes da igreja de São Nicolau.


“Sento
Na Staré Město
Na igreja
De São Nicolau
Vejo o tempo
Fugir nos vitrais
Fluir no teto
Pintado em ondas
Passeio
Com meus filhos
No presente
No passado
E quem sabe
O futuro me
Aguardará
Para colher os frutos
Dessas minhas palavras
Lançadas
No ar?”
(“Kostel sv. Mikuláše”, 02/07/2018, 11h54)


O catolicismo de P.. O judaísmo de K.. Tudo de K. referia-se ao pai, inidicava ao pai, feito setas com destino certeiro. O “nojo” contra qualquer uma das atividades do filho transparecia na indiferença de “Coloca em cima do criado mudo!”[6] do pai, como se o livro não existisse, como se K. desaparecesse por entre suas palavras de fogo.


P. chega ao Café Mozart. A primeira repetição acontece quando reconhece Yamilet ao piano. Elas trocam olhares, trocam acenos de que um dia se encontraram, e passaram quatro horas sorvidas em músicas do leste europeu.
“No Café
Tomei
Sorvi
Cada uma
De tuas
Palavras
Como se fossem
Ouro
Como se fosse
Pó
E ao pó
Voltasse
Cada uma de
Minhas células
Feri
Meus ouvidos
Alcancei
Tua voz
Inaugurando
Em mim
Um canto
Novo
Livre do sentimento
De culpa
E autocomiseração
Que tua Carta[7]
Ao contrário
Em mim instalou”
(“No Café Mozart”, 02/07/2018, 17h30)
A segunda coincidência ocorreu no Národiní Dúm Na Vinohradech, a Casa Nacional, com o concerto do melhor de Mozart e Dvořák. O violinista-maestro era o mesmo de quatro anos atrás. Mas ele também não é o mesmo, pois na ocasião fora apresentado pelo violinista-maestro de então.


Os dias em Praga chegam ao fim. Mas ainda resta um tempo para passear livremente na cidade, para se andar insistente na cidade até gastar a sola dos sapatos e sentir como se não tivesse pés. Eles chegam ao Kampa Park. Os filhos descansam sob a sombra de uma árvore. A mãe se mantém à distância, até porque na distância é que eles poderão voar.
“Vejo
Os filhos
Crescerem
Por entre
As folhas
Da árvore
Descortinando
As páginas
Escritas
De uma
Longa história
De amor
Teimosia
E imensa
Dor
Eles se parecem
Comigo
Eles são feitos
Da mesma
Matéria de sonhos
Que um dia
Visitou o parque
Ao meio-dia
E na terra
Germinou
Flor”
(“Kampa Park”, 04/07/2018, 13h23)


Carro. Aeroporto. Espera. Avião. Budapeste. Eles chegam tarde à cidade dividida, à cidade prometida de belezas e contradições. Por isso o medo de P.. Por isso a decepção de dois de seus filhos – ou a decepção que era dela, mas se projetava na tela dos rostos filiais.
Mas uma noite. O dia recomeça com a esperança. E, ali, a esperança tem cor azul.










“Procuro
Transparência
Nas paredes
De Budapeste
E encontro
Os dois lados
Da mesma
Cidade
Os opostos
Que se complementam
Não se contradizem
E não me sinto
Só
Sento-me
Em um monte
Alto
Às margens
De um rio
E escuto
Os acordes
De uma valsa antiga
Emoldurando
Em tom azul
Para que
Eu possa viver
A transparência
Nos dois lados
Da mesma moeda
De Buda a Peste
E sendo uma
Só”
(“A cidade azul”, 07/07/2018, 09h45)
14/07/2018 11h33
A prosa vai se aproximando devagar. Ela observa os personagens. Ela trilha seus caminhos. Sente o cansaço. E após os quatro dias na capital húngara, aquela que foi conquistada por mais povos ainda do que Praga, a prosa toma o lugar da poesia ao chegarem, P. e dois de seus três filhos, ao aeroporto de Budapeste rumo à Lisboa. No retorno ao Brasil. No final da viagem literária. A vida que imita a viagem muito mais do que a viagem imita a vida.
“Desde Recife, não haviam se afastado nem um segundo. Uma sabia da história da outra, como se fossem irmãs siamesas.
No voo de Recife para Lisboa, escutou cada acesso de tosse da outra, mesmo não estando lado a lado. A tosse era um sinal de cansaço, a presença do rapaz, mesmo ela havendo terminado o namoro.
No aeroporto de Lisboa ficou esperando que ela almoçasse num restaurante com opção vegana – era mais difícil se alimentar sob restrição de leite e ovos.
Praga emanando o aroma da primavera em pleno mês de julho. Ficou no hotel enquanto ela visitava o Castelo, a ponte Carlos IV, o museu de Kafka… Kafka e seus amores inacabados, e sua tosse interminável, feito a tosse de Manoela.
Mas não havia sangue na tosse de Manoela, e poderiam continuar a viagem. O bairro judeu, a sinagoga Staronová, e a lista de nomes apagados da terra nos campos de concentração das paredes no memorial ao lado do Cemitério Judaico. Ali Manoela se lembraria do documentário “Red Trees”, de Marina Willer, que narra a história de Alfred sob o olhar da filha mais velha. A família de Alfred fugiu da perseguição nazista em Berlim, veio para Praga, e conseguiu emigrar para o Rio de Janeiro.
Uma pausa para visitar o Café Mozart, no mesmo prédio onde Kafka morou na Staroměstské Náměstí 22, na frente do relógio Astronômico. E a pianista é a mesma de quatro anos atrás – a cubana Yamilet, Yamila para os mais próximos –, Manoela escreveu no diário assim que chegou ao hotel.
E estavam as duas tão juntas, mais juntas do que aquela que Manoela perdeu há quatro anos.
Até chegarem a Budapeste. A cidade dividida. A cidade reconstruída a cada conquistador, cada povo, cada língua e cultura, feito um selo de bagagem, um carimbo de passaporte que elas haviam construído passo a passo, viagem a viagem, até chegarem a Budapeste, a cidade dividida, onde iriam se despedir após quatro anos juntas.
Sim, Manoela poderia viver com o básico. Mas as duas juntas fora o mais básico que conseguiu em toda vida. Mesmo após o término do namoro. Mesmo finalizando o doutorado. E depois? O que faria? Aprenderia línguas? Aperfeiçoaria um instrumento? Viajaria o mundo inteiro em 180 dias? Porque algo deveria ser feito com o vazio. No vazio não se põe em pé, não se levanta ao menos da cama, e a cama pareceria estreita no quarto de hotel, forçando Manoela a acordar cedo e caminhar a cidade inteira, até gastar a sola dos sapatos e não sentir os pés.
E não sentiu os pés, como se deslizasse em rodinhas pelas ruas de Budapeste. Primeiro Peste, e o Parlamento ao meio-dia, e o sol queimando a pele branca de Manoela até entrar-lhe nos ossos e dos ossos não saír mais. Buscava nos ossos a razão para a briga com Jonatas, como se jogada fora da barriga da baleia, depois de morte, e três dias, e ressurreição.
No hotel juntas, e Manoela tomando um banho quente para esquecer o passado, para só lembrar o presente e o metrô para Buda, a igreja de São Matias, o Bastão do Pescador, a Galeria Nacional, e havia uma exposição de Frida Kahlo, que preferiu não visitar, para conhecer melhor os artistas húngaros do museu, tais como Viktor Madarasz, Bertalan Székely, Ligeti Miklós, Károly Ferencey e Laszlá Tajképei.
O círculo se fechando com o terminar dos dias, com o final da viagem que as iria separar. Só por umas horas? Mas como se fossem anos, como se o tempo condensasse em tanta informação e não teriam uma à outra para provar a certeza das coisas, para descobrir na materialidade das coisas os átomos de Epicuro, e o centro dos átomos não se tocando jamais, e, na verdade, elas nunca estiveram juntas, desde que Manoela a comprou na viagem para a Romênia e a República Tcheca quando perdeu aquela outra há quatro anos.
Fora tudo uma ilusão. Ao comprar a passagem com direito a uma – e somente uma – bagagem de bordo, não sabia que a bolsa vermelha também contaria, e da companheira se separaria, de Budapeste até Lisboa, com o coração suspenso se na chegada a encontraria, rodando e rodando em círculos, preocupada com a tensão de sua dona, com o perigo que sua dona corria, apesar da briga com a recepcionista do check-in, com o selo de frágil em sua face, com o ticket que garantia o embarque na parte inferior do avião.”
(“Mala”, de Budapeste a Lisboa, 16h10 – 19h, 08/07/2018)
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* Patricia Gonçalves Tenório (Recife/PE, 1969) escreve prosa e poesia desde 2004. Tem onze livros publicados, com premiações no Brasil e no exterior, entre elas, Melhor Romance Estrangeiro por As joaninhas não mentem (em outubro, 2008) e Primo Premio Assoluto por A menina do olho verde (em outubro, 2017), ambos pela Accademia Internazionale Il Convivio, Itália); Prêmio Vânia Souto Carvalho (2012) da Academia Pernambucana de Letras (PE) por Como se Ícaro falasse, e Prêmio Marly Mota (2013) da União Brasileira dos Escritores – RJ pelo conjunto da obra. Mestre em Teoria da Literatura (UFPE) e doutoranda em Escrita Criativa (PUCRS). Contatos: patriciatenorio@uol.com.br, www.patriciatenorio.com.br
[1] LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Organização: Jovita Maria Gerheim Noronha. Tradução: Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 327.
[2] A experiência de um(a) artista da fome em http://www.patriciatenorio.com.br/?p=6990. Em 16/05/2014.
[3] ONFRAY, Michel. Teoria da viagem: poética da geografia. Tradução: Paulo Neves. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p. 49.
[4] KAFKA, Franz. Carta ao pai. Tradução: Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2007.
[5] KAFKA, Franz. Um artista da fome. In Um artista da fome seguido de Na colônia penal & outras histórias. Tradução: Guilherme da Silva Braga. Porto Alegre, RS: L&PM, 2015.
[6] KAFKA, Franz. Carta ao pai, p. 69.
[7] KAFKA, Franz. Carta ao pai, p. 69.